3: Filmes de Rolo e Chá de Limão

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O rolo encaixado no projetor de cinema rodopiava com tiques metálicos em meio à poeira do galpão antigo, dissolvendo a sequência de imagens contidas em cada película de plástico inflamável na parede de blocos de concreto há alguns metros

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O rolo encaixado no projetor de cinema rodopiava com tiques metálicos em meio à poeira do galpão antigo, dissolvendo a sequência de imagens contidas em cada película de plástico inflamável na parede de blocos de concreto há alguns metros. Uma luz bruxuleante escoava do aparelho, que crepitava vez ou outra sob seu amontoado de ferrugem e roldanas envelhecidas pelo tempo, as quais tossiam pó e memórias tão desbotadas quanto o filme à minha frente estava ficando graças a todas as vezes em que eu o colocava para assistir.

Ao meu redor, o depósito espaçoso da loja da minha tia exibia amontoados de velharias em caixas e protegidas por lonas. Além da mulher mais velha, somente eu e Romeu sabíamos desse lugar, devido a todas as vezes em que ela pediu para que ajudássemos no transporte de algumas das relíquias ali guardadas para seu estabelecimento.

Mas haviam coisas intransferíveis no galpão, também. Era naquele lugar que todas as coisas que pertenceram a minha mãe estavam, a exemplo do projetor de cinema e de cada um dos seis rolos de filme que eu nunca cansava de assistir, porque foram estrelados por ela.

As pequenas janelas retangulares de vidro espalhadas pelas paredes acinzentadas permitiam que os tentáculos de sol diluíssem seu filtro oliva ao meu redor, banhando o espaço com singelos feixes flamejantes que iluminavam a poeira pairando no ar, como estrelas que vagavam sem rumo pelo espaço, perdidas em algum ponto entre o início e o fim do universo.

O ar tinha um cheiro agridoce de fumaça, mofo e chocolate. O primeiro se sobressaiu assim que fisguei mais um cigarro do maço surrado ao lado da minha coxa recoberta por um short jeans, estalando o isqueiro na outra mão para libertar sua chama. Acendi a ponta do cilindro mostarda-e-branco e o deixei pesar entre meu indicador e médio por um instante, observando as feições etéreas da minha mãe sorrirem na projeção por trás dos arabescos de fumaça pálida que se dissolviam no ar.

Tive a impressão de que minhas artérias amarraram meu miocárdio em um nó quase impossível de desatar. Então, vieram as ondas confusas de saudade e angústia, quebrando no meu estômago em uma ânsia de vômito que só se findou quando traguei o cigarro com força, inundando meus pulmões de cinza.

Eu não fumava normalmente, e sempre que o fazia, precisava escovar os dentes umas quatro vezes para tirar o cheiro e Romeu não perceber. Detestava não ter coragem o suficiente para contar isso para ele, embora tivesse a impressão de que também ocultava coisas de mim. As coisas não eram tão transparentes entre nós desde... Bem, desde que crescemos e tudo começou a ficar um pouco mais abstrato.

Crescer é estranho pra burro, na verdade. Eu diria que as coisas começaram a sair dos eixos quando fiz onze anos. Mais precisamente, em uma apresentação sobre os movimentos  tectônicos na aula de geografia do sexto ano, quando fui para a frente da turma inteira recitar tudo o que havia escrito nas minhas palmas sobre a influência das placas no fluxo do magma vulcânico.

Deu que, enquanto falava sobre explosões magmáticas e derramamento de lava, senti que eu mesma havia me transformado em um vulcão, porque alguma coisa quente começou a escorrer pelo início da minha coxa coberta pela calça cor de trevo da escola. Meu pânico foi tanto que simplesmente parei de apresentar e comecei a correr na direção do banheiro como se lá tivesse um buraco de minhoca que me levaria direto para outra dimensão.

O Fantástico Mundo de Romeu e JulietaWhere stories live. Discover now