Capítulo 18 - Frieza de Lástimas

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Existia uma fina linha que cindia a realidade do mundo dos pesadelos. Era algo tão efêmero quanto um sopro e tão frágil quanto um espelho. Um cristal que refletia e cortava com a mesma intensidade.

E Mikasa Ackerman se encontrava presa no núcleo desta linha.

Era a única explicação que sua mente havia encontrado para tudo lhe parecer tão hediondo e nebuloso, para aquela deturpação invadindo sua alma e, ainda assim, ela continuar sendo capaz de sentir o gosto metálico de sangue e o cheiro mesclado de grama molhada com timbre de ferro.

Aquilo não era real; o modo como ela podia estar facilmente enterrada em um lago sem fim não era real.

Mas ela sabia que não era possível sentir dor em sonhos. Ela sabia. Então por quê respirar parecia infinitamente mais difícil? Por que sua cabeça latejava tão fortemente? Seu esterno deveria estar rasgado por dentro, pois as costelas certamente pareciam facas agudas.

A garota manteve os olhos fechados, porque daquela forma permaneceria distante. Irreal.  Seu subconsciente começava a se recordar do que havia sucedido àquilo, no entanto, do barulho assustador dos pneus derrapando e do modo como seu coração parou por longos segundos durante a queda. Sua mãe estava gritando? Não, tudo estava silencioso demais... Por que ninguém estava gritando? Onde ela estava? Onde eles estavam?

Mikasa, em todos os quinze anos de sua jovem vida, nunca se agarrou com tanta força a um pensamento, a uma ilusão. Talvez uma parte de si soubesse exatamente o que encontraria, e ela nunca se odiou com tanto vigor por ter tido a audácia de abrir os olhos.

Por favor, não.

Advém que nenhuma súplica tardia teria salvado-a de avistar o carro à metros dali, destroçado e capotado. E enquanto seu corpo havia sido jogado para fora, atirado pelo solo da grande clareira, seus pais continuaram dentro do veículo.

Bile subiu a sua garganta ao identificar o vidro pressionado contra o estômago do homem mais velho, a camisa branca manchada de vermelho escuro. A expressão no rosto de seu pai era, como de costume, neutra e solina. Mikasa teve uma certeza amarga de que ele estava afrontando a morte com aquela típica natureza calma e trocista.

Por um segundo, ela imaginou ter visto um suspiro escapar dos lábios de sua mãe, balançando os fios escuros que cercavam os ombros magros... Então, uma fração depois, ela percebeu a palidez não-natural e o ângulo estranho em que o delicado pescoço se encontrava.

Por favor, ela teria gritado. Por favor. 

Seus dedos se apertaram, dormentes e trêmulos, antes de vagarem até o rosto a fim de secar as lágrimas. O toque machucou, contudo, e ela percebeu que não eram lágrimas, que não estava chorando. Não passava de um mero filete de sangue escorrendo por sua bochecha.

A Ackerman tentara inutilmente se arrastar pelo chão, desistindo ao sentir a cabeça girar em tontura. Seus músculos doíam pelo esforço de ficar parada, de não respirar alto demais — porque nada daquilo, nada, poderia ser real. E ela sentiu-se novamente com nove anos de idade, escondendo-se embaixo das cobertas e fingindo não estar presente apenas para afastar os pensamentos ruins e possíveis monstros.

O nó em sua garganta era insuportável a ponto de não deixá-la chorar ou sentir o restante de seu corpo. Mikasa não passava de um sussurro, de um emaranhado de dor — dor essa que fugia para longe de seu alcance, dispersando-se lentamente enquanto o frio a puxava para a escuridão impiedosa.

Não há monstros.

E a constatação arrebentou a linha que a segurava. Sem barulho algum, ela estava caindo. Não sabia, entretanto, se pendia para o lado dos pesadelos ou da realidade.

o paraíso dos quebrados | eremikaWhere stories live. Discover now