Vinte e Três

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Vinte e Três

"..E parece que eu parti seu coração
Minha ignorância ganhou mais uma vez
Eu não percebi isso desde o início
E te machuquei tanto."

Sorry - Halsey

Não tinha como voltar atrás. Eu havia jurado a mim mesmo nunca contar a ela, eu sabia que isso iria quebrá-la e que quando ela soubesse, seria o fim do nosso casamento, eu conhecia a minha esposa o suficiente para saber o quão dura ela podia ser consigo mesma, e lá estava eu, terminando de colocar o prego no nosso caixão.

— Repete! — Ela exigiu, cruzando os braços. — Repete o que você falou!

Verônica estava branca, seus lábios sem cor e sem vida e seus olhos eram como se fossem duas bolas de vidro, sem expressão. Derrotado, me sentei na cama ao seu lado, buscando a melhor forma de começar a explicar a ela.

Mas qual é a melhor forma de dizer algo que fatalmente destruirá o coração de uma mulher?

— Quando aconteceu aquilo... — comecei, olhando para ela para me certificar de que ela sabia sobre o que eu estava prestes a falar — o médico que a atendeu na emergência quis conversar com alguém da sua família — continuei, escolhendo cautelosamente as palavras —, eu disse a ele que sua mãe estava a caminho, ele me perguntou o que eu era seu, respondi que era o seu namorado e então ele concluiu que eu era o pai do bebê e foi somente por isso que decidiu me contar, sem esperar pela a sua mãe — a respiração de Verônica estava acelerada e ela encarava as próprias mãos enquanto me ouvia. Aquele assunto era para ela o seu próprio Calcanhar de Aquiles, algo que estaria sempre com ela, mesmo que nunca mais fosse verbalizado, eu sabia que ela ainda sofria com as consequências daquele dia.

— Continua — pediu com a voz chorosa.

— Útero didelfo, esse é nome — continuei - o médico disse que ao retirar o bebê, constataram que o seu útero era dividido em dois, com dois colos.

— Você está dizendo que eu sou uma aberração? — Pude sentir a fragilidade em sua voz.

— Não, é claro que não. — Toquei a mão de Verônica, mais para criar coragem para continuar do que para consolá-la, mas ela não reagiu o meu toque, foi como se eu estivesse encostando em uma pedra, a sua única reação foi a de perguntar o que mais o médico havia falado e que eu havia escondido dela, soltei a sua mão e como um pastor que acabou de perder todo o seu rebanho, eu prossegui — É um caso raro, mas não tão raro assim, o agravante foi que ao retirar o bebê, lesionou uma das suas trompas, o doutor Olavo foi categórico ao dizer que você deveria evitar uma gravidez a todo custo.

Em silêncio, com a respiração acelerada, Verônica se encolheu na cama, abraçando os seus joelhos e balançando o seu corpo para frente e para trás. Resisti ao impulso de abraçá-la e apenas pedi que ela respirasse com calma. No mesmo instante, ela parou de se mover e me encarou com seus pequenos olhos cor de avelã e simplesmente deixou que tudo viesse à tona, tão forte e violento quanto a uma catarata em dia de tempestade.

— Como você pôde? Por que nunca me contou? — Inqueriu, olhando-me incrédula, com raiva.

Eu sabia que nada do que eu dissesse seria o suficiente para fazê-la entender, eu havia sim sido egoísta, mas a necessidade dela de ter um filho era tão grande que às vezes a cegava e eu não tinha dúvidas de que ela iria colocar a própria vida em risco somente para tentar.

Eu não podia deixar que ela se arriscasse.

Eu não saberia viver em um mundo sem ela.

— Diz alguma coisa! — Gritou, avançando para cima de mim novamente. — Por que nunca me contou? Como pode ser tão egoísta! — Ela estava com o corpo em cima do meus e as lágrimas que escorriam dos seus olhos queimavam o meu rosto.

— Vê, por favor, se acalma — pedi, tentando controlá-la, mas ela se debatia e me batia e no fundo eu merecia cada tapa que ela dava em meu peito, então, parei de relutar e deixei que ela me batesse até cansar.

— Por favor, eu preciso entender... — pediu soluçando, já quase sem forças para me acertar, o seu olhar perdido me fez sentir como se o meu coração tivesse sido arrancado do meu peito, deixando apenas uma casca vazia na qual eu me escondia.

Foi quando eu a abracei e me sentei na cama com ela em meu colo.

— Porque eu não podia te perder — respondi, passando o polegar em seu belo rosto. — Eu não podia correr o risco, e por Deus, Verônica, eu conheço a sua teimosia, eu sabia que você seria capaz de arriscar a própria vida só para ter um filho.

Ainda em meu colo, Verônica encarou-me como se estivesse pensando em suas próximas palavras e com a voz calma, respondeu.

— E você está certo — silabou, levantando e ficando parada a minha frente – e essa era uma decisão que cabia a mim e não a você!

A frieza em sua voz me fez arrepiar a espinha. Estávamos em uma estrada sem retorno, havia muita coisa envolvida, era tarde demais para recomeçarmos, para tentarmos, era tarde demais para nós dois, o casal chamado por todos de perfeito, era na verdade, uma fraude.

— Vê, por favor — a chamei, tocando em sua mão gelada. — Eu não posso te pedir perdão porque eu não me arrependo.

— E o que espera de mim então, Cristiano? Se nem se arrepender do que fez você é capaz? — Gritou, caminhando de um lado para o outro do quarto.

— Você quer que eu me arrependa de ter omitido isso da minha esposa para mantê-la mais tempo ao meu lado? — Gritei de volta, me levantando também. — Quer que eu me arrependa por ter ficado apavorado com a ideia de perdê-la por causa de uma gravidez? Não, Verônica! Nada era mais importante para mim do que você estar viva! Eu ia amar ser pai, mas abriria mão novamente disso se isso significasse envelhecer ao seu lado.

— Era? — Verônica perguntou, ficando frente a frente comigo. — Nada era mais importante? — Repetiu minha frase, fazendo aspas com as mãos no "era".

Eu abaixei a cabeça.

— Foi só uma forma de expressão — me defendi.

— Não, Cris, foi a verdade — murmurou, me fazendo ficar em silêncio — é melhor eu ir embora — disse, virando-se — se você tivesse me contato, eu não teria insistido em ficar grávida e talvez, nosso casamento não teria chegado ao fim. — Soltou — Eu posso te perdoar por tudo, mas não consigo te perdoar por isso.

O último barulho que ouvi antes de arremessar o abajur contra a parede, foi o do salto dela indo em direção à sala e depois, da porta batendo.


Todas as lembranças que não posso esquecerWhere stories live. Discover now