Dois

17 5 0
                                    

"Um grande amor nunca é apagado do coração,
apenas esquecido pelas suas memórias"
Vinícius de Campos Ribeiro

— Poxa, Cristiano, o café está uma loucura e você por aí andando de moto? — Verônica me abordou assim que entrei no nosso escritório.

Eu olhei para ela sem nada responder. Se tivesse sido há duas horas, quando eu ainda não tinha recebido o meu diagnóstico, teríamos discutido, eu teria respondido de forma grosseira para ela me deixar em paz, para que parasse de pegar no meu pé, mas daquela vez havia sido diferente, eu tinha uma escolha a fazer, e ambas me fariam esquecer a mulher que estava na minha frente.

— Cristiano, você está me ouvindo? — Verônica perguntou, provavelmente porque estranhou que não retruquei.

— Você está certa. Podemos conversar mais tarde? Estou com dor de cabeça —respondi, e fui para o banheiro lavar o rosto.

— Você precisa ir ao médico ver isso, Cristiano — ela respondeu em tom seco, mas aparentemente mais calma. Ela já não me chamava mais de Cris há algum tempo. — Essas dores de cabeça parecem que estão mais constantes — completou, me deixando sozinho em seguida.

Queria poder dizer a ela que justamente havia acabado de retornar de uma consulta médica...

Mas não foi o que fiz. Ainda não era o momento para isso.

Encostei na parede em frente ao espelho do banheiro do escritório do café e observei a minha imagem refletida, e enquanto encarava um rosto com barba por fazer, me perguntei quando foi a última vez que Verônica e eu passamos mais de dois dias sem discutirmos por alguma coisa.

Lavei o rosto, sequei com a toalha felpuda azul e analisei por alguns segundos o logotipo do nosso café bordado nela. Verônica queria que se chamasse Leitura com Café e eu, Café com Leitura. Por sorte, o nosso professor do MBA concordou comigo, dizendo que a minha escolha soava melhor e ela então aceitou que o nosso estabelecimento fictício de conclusão de curso, se chamasse Café com Leitura.

— Cristiano, o Milton está aqui — ela disse, do corredor do escritório. Eu havia ligado para ele assim que saí do consultório médico.

— Pede para ele subir até aqui — gritei de volta, saindo do banheiro.

Ela não respondeu nada, mas eu sabia que ela iria pedir para ele subir.

Milton e eu somos amigos desde o ginásio. Fizemos faculdade juntos e um sempre esteve presente na vida do outro. Somos como irmãos.

— TonTon! — falei, assim que ele bateu na porta aberta. — Entra logo, cara! Desde quando precisa bater? — brinquei, me sentando em uma das poltronas.

TonTon era o apelido dele desde pequeno, por causa da sua Disfemia, ou simplesmente, gagueira, como a doença é popularmente conhecida. Eu o vi sofrer o preconceito na pele diversas vezes, quando o termo Bullying ainda não era utilizado.

Um dos dias mais marcantes foi no primeiro dia de aula da sétima série, a professora de francês pediu que nós nos apresentássemos e, quando chegou a vez dele, ele teve dificuldades em dizer o seu nome, onde prolongou demais as primeiras sílabas, enroscou no "Mi", pronunciando-o repetidas vezes e se sentou na cadeira, desistindo de se apresentar. Praticamente a classe toda caiu em gargalhada, mas a professora Franciele, não. Ela pediu que ele se levantasse novamente, ressabiado, ele o fez e então ela pediu para ele repetir:

— Milton, quero que repita vagarosamente o seu nome — ela pediu. — Naquela altura, ela já sabia que o nome dele era Milton porque estava olhando a lista de chamada.

Ele olhou para ela e mais uma vez tentou dizer o próprio nome e mais uma vez falhou. Dessa vez, o "Mil" não saiu e ele acabou repetindo duas vezes o "Ton".

— TonTon. — A professora Franciele sorriu para ele e repetiu o que ele havia acabado de dizer, encerrando as risadinhas pela sala dizendo que, a partir daquele dia, ele seria para ela o TonTon.

— E-e-e-estamos seeguros? — TonTon perguntou, se sentando de frente para mim. Os exercícios intensos com a fonoaudióloga que ele fez até entrar na faculdade haviam amenizado bastante o problema, ele já não gaguejava tanto quanto quando era criança, mas ainda costumava estender as duas primeiras sílabas das palavras enquanto piscava os olhos freneticamente.

— Sim — concordei. — Verônica está bem ocupada lá embaixo, ela não vai subir.

— E-e-e então? — perguntou.  Ele estava tão aflito para saber o diagnóstico quanto eu estava antes de ir ao médico.

— Eu posso morrer se eu não operar — falei, de uma só vez.

Milton me olhou com espanto e passou as mãos pela cabeça, perguntando depois:

— Quan-quando você vai o-o-operar?

— Ainda não decidi a respeito — respondi, enquanto criava coragem para dizer ao meu melhor amigo que, depois que eu operasse, não me lembraria mais dele e de todas as histórias que vivemos juntos desde crianças.

— Co-como não?

— TonTon, o médico disse que com a cirurgia, há cinquenta por cento de chances de eu perder a memória.

— Mas eu já li a respeito — ele disse, sem gaguejar. — A anestesia causa ammmnésia por algum tempo mesmo.

Respirei fundo e expliquei a ele que, no meu caso, eu iria sofrer de amnésia retrógrada, disse a ele exatamente o que o doutor Augusto me explicou e, quando terminei, ele esmurrou a poltrona com tanta força que sua mão ficou vermelha na hora e eu entendi o seu motivo: mesmo após o meu casamento Milton e eu nunca deixamos de ser próximos, eu era praticamente o único amigo que ele tinha, eu era o único que não ficava tentando completar as suas frases, eu sabia o quanto ele odiava aquilo, por isso, pacientemente, eu sempre o deixava falar, mesmo que ele tivesse que tentar várias vezes até conseguir finalizar uma sentença. E, de repente, ali estávamos nós falando sobre eu perder a memória dos nossos melhores momentos.

— Vo-o-o-cê tem que ope-perar — ele declarou, olhando diretamente para mim.

— Você entende que se eu fizer isso corro um grande risco de não lembrar de mais ninguém? Nem de você? — indaguei, me sentindo péssimo por ter que fazer aquela maldita pergunta.

— A gente dá um je-jeito de vo-o-o-cê se lembrar de mi-mim — Milton respondeu, depois se levantou e começou a caminhar de um lado para o outro do escritório.

— Como? — perguntei, descrente.

— Jáaa sei! — ele respondeu, pouco tempo depois. — Vamos faaazer um vídeo nooosso em seu celular!

— A ideia é boa, vai servir para eu saber que quando você me disser que somos amigos, após eu retornar da cirurgia — fiz uma pausa e me corrigi —, se eu for fazê-la mesmo... que estará dizendo a verdade, mas e quanto ao resto, quanto a nossa história, o nosso passado? Quanto a tudo o que vivi até hoje?

Milton parou ao meu lado e tocou em meu ombro, me fazendo erguer a cabeça e olhar para ele.

— Você não pooode desistir — ele falou, começando a sorrir. — Além do maaais, eu sou iiinesquecível — completou, e então, nós dois rimos juntos.

Quando o silêncio tomou conta da sala novamente, pela primeira vez desde que soube o diagnóstico, eu chorei. O meu amigo se agachou no chão de frente para mim e me abraçou, consolando-me daquilo que não tinha consolo.

— Veverônica sabe? — ele perguntou, algum tempo depois.

Eu balancei a cabeça em negação.

— Quando vai cooontar?

— Eu não sei. Tenho no máximo três semanas para fazer a cirurgia, estou pensando em pedir o divórcio e deixá-la fora disso, não quero que ela sofra.

— Vooocê não pooode faaazer iiiisso — meu amigo disse, ele estava ficando nervoso e eu sabia só pelo fato de que a gagueira amentou.

— Talvez seja o melhor para ela, TonTon. A gente já vem se estranhando há algum tempo, você sabe.

— Eeeela vai sooofrer — ele respondeu, balançando a cabeça em negação.

Verônica entrou no escritório pedindo para eu ir ajudá-la porque a casa estava cheia, fazendo com que a gente mudasse de assunto e a seguisse, mas eu sabia que ele ainda não havia terminado.

Todas as lembranças que não posso esquecerWhere stories live. Discover now