001. recomeço (prólogo)

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Kiara Carrera 𓆉

— Cuidado com isso!

Meu pai gritou para os dois homens que haviam acabado de sair de casa com um quadro da mamãe. Era engraçado vê-lo nervoso com cada coisinha que eles colocavam nos caminhões de mudança. Ele me viu rir. Sorriu também. Mais uma dupla saiu da casa com uma caixa escrito "Casamento" e ele voltou a surtar.

Eu já o esperava dentro do carro, ouvindo uma música na rádio a qual não sabia o nome. É hoje. Deixar tudo para trás. Nos permitir curar-nos, como meu pai disse. Filosofia bonita. Sinceramente, eu estou muito feliz por estar saindo daqui. A casa por si só já carrega muitas memórias. Era difícil não ficar estressada com tantas emoções que nos atingiam a todo o instante. Meu pai e eu começamos a discutir muito, quase todos os dias. Era como se, dentro dali, precisássemos estar sempre na defensiva, nunca baixar a guarda. Não era mais um lar. Era caótico demais. Pesado demais. Vazio demais.

A praia é distante do condomínio onde moramos, mas, mesmo assim, o motel onde eu estava dormindo só para não precisar pisar naquele chão era mais um lar do que dentro da casa. Explodi de alívio quando meu pai anunciou a casa para a imobiliária e, com o dinheiro, conseguimos uma nova no Figure 8, muito próxima as praias em Outer Banks, uma cidade não tão perto daqui. Três ou quatro horas de carro.

— Tudo pronto. — meu pai entra no banco do motorista, pulando de ansiedade e com um largo sorriso no rosto. Passou a mão por entre seu cabelo crespo. — Não quer se despedir?

Sorrio sem mostrar os dentes.

— Já me despedi. Há muito tempo.

E coloco os fones de ouvido enquanto ele troca a rádio para o inferno de música country que ele ama e eu odeio. Meu pai achou, por acaso, a música favorita dele. Soube disso no momento em que ele tirou as mãos do volante para bater uma palma, do jeitinho que ele faz quando ela toca. Sorrio. Ele começou o trajeto. Sem olhar para trás. Para uma nova vida.

-

Outer Banks, 02:22AM.

Eu despertei automaticamente assim que o carro parou. A música do meu pai estava baixinha e a estrada era tranquila, propício o suficiente para um cochilo. Quando acordei, porém, ainda achei que estivesse sonhando.

A nova casa é linda. Um jardim abrangente e com flores vívidas, iluminação amarelada, um andar, branca com detalhes amadeirados, literalmente uma casa de praia. Já havia imaginado a quantidade de hortas que podia fazer ali. Sorrio com o pensamento de chegar da praia e colher verduras frescas da minha própria horta. Olho para o meu pai. Ele está tão maravilhado quanto eu. Eu o abraço.

— É linda. Muito, muito linda.

— Sim, Kie. É linda.

O caminhão buzinou atrás de nós e nos apressamos em sair do carro. Meu pai me deu as chaves enquanto ia ajudar a tirar algumas caixas.

O jardim é lindo, deslumbrante, grama verde até mesmo sob a luz da lua. Sons de pequenos insetos e de maresia. O cheiro é verde e azul, a música das ondas batendo entre si é como Mozart. Isso aqui é o paraíso.

Encaixo a chave na fechadura e a giro, a porta não range quando eu a abro. A minha primeira visão foi de uma sala enorme, com piso de madeira e paredes de tons de champanhe com alguns adornos de palha. Meus tênis ressoam no piso e ecoam por toda a casa vazia. Mas, o que eu vejo mais a frente é, sem dúvidas o que me maravilhou. É uma varanda. Enorme. Dela, consigo ver, nitidamente, a praia e a lua. Lua cheia. Reluzente na água. Eu rio. Caralho. Isso aqui é o paraíso.

Corro para fora.

— Pai, pai! Você já viu esse lugar? Já viu? É incrível! Incrível! — grito para ele, que vinha carregando uma caixa de papelão. Ele sorri para mim.

— É a sua cara! Vá ver o quarto!

Subo correndo as escadas de madeira, não conseguindo conter minha empolgação. No fim de um corredor, há duas portas. Ambas iguais, de madeira escura, maçaneta dourada. Um pequeno K, na batente da porta esquerda, me fez perceber que aquele era o meu quarto. Abri a porta. Já estava semi-mobiliado. O piso é o padrão da casa inteira. Porém, minhas paredes são verdes. Verde não daquele verde-limão que eu considero horrendo, mas verde sálvia. Minha cor favorita. As cortinas são marrons,  balançam levemente com alguma fresta de ar que passava pelo que havia por trás delas, o que me apressei a descobrir.

— Meu Deus.

Eu exclamo inconscientemente. Também sorrio. E dou risada. E corro para a varanda extensa do meu próprio quarto, com, nada mais nada menos, do que uma vista da praia nua e crua. Areia branca, que na luz da lua parecia neve, ondas calmas, mas propícias para o surfe, e um sofá-cama marrom de couro na varanda. Num cantinho, uma rede de descanso também paira, pendurada na parede. Isso aqui é o paraíso.

Me sento no sofá, e não dou a mínima para o vento frio que atiça os pelos expostos da minha perna. Eu amo isso aqui. Meu pai ama isso aqui. Minha mãe teria amado isso aqui. E isso é suficiente para que eu chame Outer Banks de lar.

𓆉

Não percebo quanto tempo fiquei encarando a paisagem, distante dentro dos meus pensamentos, mas atenta a cada ruído da natureza, até que meu pai bate na minha porta.

— Oi. Acabamos de tirar tudo dos caminhões. Suas coisas estão no fim do corredor.

Digo que sim com a cabeça e mordo meu lábio, uma tentativa de saciar minha empolgação.

— Viver aqui vai ser como estar todos os dias em férias de verão.

Ele cruza os braços e se recosta no batente da porta. Me lança um sorriso que eu não tardo em retribuir.

— Estou aliviado que você tenha gostado tanto assim.

— Gostado? Eu amei! Não há a possibilidade de eu não gostar de ter um quarto com varanda para a praia. Tipo, de jeito nenhum. Mesmo. — respondo, gesticulando excitadamente os braços.

— Acho que vamos ter que dobrar as compras de condicionador.

— Um estrago no cabelo, mas um reparo na alma. — rio, indo abraçá-lo.

— Água salgada, alma lavada. — ele imita a voz das blogueiras, e nós dois caímos na gargalhada. — É tudo por você, Kiara.

— Obrigada, pai. Eu te amo demais. — o abraço mais forte, segurando algumas lágrimas que ameaçavam cair.

Ele sibilou palavras carinhosas e ficamos conversando mais um pouco. Eram quase 5hAM quando fui pegar um colchonete no corredor e, finalmente, dormir com o sorriso mais largo do mundo estampado no rosto.

Eu nunca lembrava dos meus sonhos. Claro, nada muito relevante que valha a pena ser recordado. Nunca lembrava, até começar a lembrar. Não é difícil esquecer uma coisa que você vê todos os dias há quase dois anos. Porque, todas as noites, há um ano e oito meses, eu tenho o mesmíssimo pesadelo. Ele me persegue. Interrompe o que eu mais amo na vida: surfar. E eu tenho que correr. Muito. Infinito. Acho que eu já dei a volta ao mundo em todos os meus pesadelos. Mesmo assim, não adiantava o quanto eu corresse, ele me alcançaria. E me apertaria, com as mãos geladas, me encarando com aqueles olhos verdes mórbidos. Eu paralisaria, o deixando me apertar até que me espremesse por inteira, até que não restasse uma gota do que um dia fora eu. Seria indolor, até não ser mais. Ele abriria a boca, para falar alguma coisa. Mas eu acordaria.

Todas as noites. Comecei a me acostumar, mas o terror ainda é permanente. Ele é aterrorizante. Talvez sempre fora. Eu que não vi. Porém, é como dizem, não é? O amor é cego?

Me estremeço. Não. Não é cego. Aquilo não era amor. E repito essa frase na minha cabeça, até pegar no sono novamente.

𓆉

JJ vai aparecer no próximo, hein. do melhor (ou pior) jeito possível. 👀

JJ e Kiara - Onde o Amor ComeçaWhere stories live. Discover now