Capítulo 40. Necrose

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Mesmo enfraquecido, Deinos se levantou e desferiu um golpe contra o pione, levando-o ao chão e prendendo-o nele para que eu tivesse a chance de me desvencilhar. Mas Deinos não aguentaria por muito tempo. Tirei do bolso outra esfera, apertei seu botão e a enfiei no uniforme do pione, que se levantou em uma explosão de poder forte demais para Deinos e avançou contra mim. Antes que ele cravasse seu ferrão no meu pescoço eu consegui desviar, colocando-o entre mim e a borda do telhado, e o chutei para a queda abaixo. A nuvem de pó explodiu ao seu redor e ele desapareceu dentro dela, afogando-se na sua nova lealdade ao metriona.

Deinos soltou um grunhido dolorido e eu imediatamente voltei para seu corpo caído, intoxicado por aquele brilho avermelhado que pulsava logo abaixo da pele, tão mortal que ele não sobreviveria por mais muito tempo se nada fosse feito. Eu precisava salvá-lo; e sabia que Donecea saberia como.

Equilibrei precariamente as toneladas do seu corpo sobre meus ombros e nos arrastei pelas escadarias abaixo até o chão de neve às margens do acampamento. Segui para um dos caminhões de feridos que estava quase partindo para as tendas iátricas e joguei Deinos com os demais. Mas eu não o deixei ir sozinho e pulei na carroceria em movimento antes que ela me deixasse para trás, porque eu queria ter certeza de que ele chegaria nas mãos que poderiam ajudá-lo.

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Arrastei Deinos o mais rápido possível para a tenda de Donecea e o joguei sobre um dos leitos improvisados no chão, agora que todas as macas já estavam ocupadas. Ela corria de um lado para o outro com precisão e confiança, cravando agulhas naqueles que gritavam de dor e aplicando curativos no sangramento de outros, tentando poupar as vidas daqueles que se davam por essa causa. Não havia nenhuma sombra de receio no seu rosto, mesmo quando alguns dos soldados quase escorregavam para o precipício da morte, porque ela não os deixava cair. E, ainda que tantos partissem até o fim dessa batalha, com ela ali eu sentia que, inevitavelmente, tudo terminaria bem.

Quando Donecea percebeu que eu estava ali e viu o vermelho pulsando em um dos braços de Deinos, ela correu na nossa direção.

– Ele foi envenenado por um dos piones! Vocês têm algum antídoto?!

Em silêncio, Donecea rasgou a manga do braço envenenado, libertando aquele brilho tóxico que inundava as veias sob a pele já apodrecida. Eu praticamente conseguia ver o veneno migrando por cada uma das suas células, corroendo tudo no caminho e se aproximando de alguma parte vital... Eu o via morrendo. E não havia nada que eu pudesse fazer além de segurá-lo no leito, enquanto Deinos rugia de dor e se contorcia violentamente.

– Não existe soro para o veneno dos piones. – Donecea revelou. – Nós temos de amputar o braço dele antes que o veneno se alastre.

Nós?!

Abri a boca para gaguejar alguma coisa incoerente, mas ela já tinha mergulhado nas caixas ao canto da tenda e voltado com as ferramentas para arrancar o braço de Deinos, sendo uma delas uma gigantesca serra prateada. Donecea colocou uma espécie de capacete no próprio rosto e, enquanto Deinos tentava se desvencilhar, ela cravou uma agulha no seu peito. Lentamente o corpo dele começou a enfraquecer, seus olhos se revirando e murmúrios confusos lhe escapando da boca, talvez em um pedido de que não fizéssemos o que estávamos prestes a fazer... Mas eu sabia que, se não ouvíssemos Donecea, ele morreria.

Eu queria dizer que tudo ficaria bem, mas sabia que tudo que Deinos ouviria seria o medo nas minhas palavras, então apenas me mantive em silêncio. E prendi com firmeza o membro que estava prestes a ser removido.

– Você tem tantos braços que nem vai sentir falta desse... – Donecea, por outro lado, conseguiu sussurrar, infinitamente mais confiante do que eu.

Sua voz tinha uma suavidade protetora tão envolvente que eu até me acalmei um pouco... Mas então ela apertou um botão naquela serra e toda a calmaria desapareceu abaixo dos gritos estridentes da máquina. A determinação fria no rosto de Donecea era tão surreal que me perguntei se ela já tinha feito coisas piores, cada movimento preciso, calculado e munido de uma eficiência que eu jurava ser capaz de salvar mundos inteiros... E, quando ela moveu a serra na direção da pele de Deinos, eu apenas segurei o membro com mais força e prendi a respiração.

O sangue escuro espirrou para todos os lados, pintando o meu capacete e o de Donecea de um preto gosmento que escorria para o chão. O som da carne sendo cortada perfurou os meus ouvidos e o cheiro de osso despertou ânsias no meu âmago. Em algum momento a minha visão começou a escurecer e as pernas fraquejaram, me levando em espiral para as profundezas da inconsciência. Eu ia desabar ali mesmo... Mas então Donecea sussurrou:

– Olhe para mim. – Relutante, retirei os olhos da poça dos restos de Deinos e encarei aquela mulher na minha frente. – Essa é apenas a face feia da misericórdia, Arkadi... Mas continua sendo a única salvação.

Então, no que pareceu um piscar de olhos, o braço envenenado de Deinos tinha sido cortado e Donecea já parava o sangramento com uma larga fita sobre o corpo adormecido do espinero.

Donecea abriu um sorriso, meio confortante, meio implicante, e, antes de se virar para me abandonar, ela sussurrou para mim:

– Viu? Nem doeu. 

Endossimbiose | Versão Em PortuguêsWhere stories live. Discover now