Capítulo 8. Recaptação

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Ele me virou as costas e seguiu na direção da sua nave, julgado, mais por si do que por mim. Meu silêncio doía tanto quanto se eu tivesse dito algo; e não porque a minha opinião importava, mas porque, para ele, a de qualquer um importava, impregnadas pelo que ele achava que estavam pensando. Continuei calada e o segui para a área onde os coletores se concentravam.

Depois de vasculharmos o lixo, nós cheirávamos a rejeição... O aroma da camuflagem. Eu estava tentando não pensar na camada de germes interestelares famintos que nos cobriam, esperando o mínimo de nossos deslizes imunes para se banquetearem de nós. Escondemos nossos rostos nos trapos, mas as mãos não negavam nossa espécie.

Quando atravessamos o aterro, alguns grupos de coletores foram completamente indiferentes a nós, conversando distraídos sobre o que tinham encontrado nas tralhas ou algo do tipo. Mas alguns focaram em nossas passadas com uma atenção especial... Até que as conversas ao redor se silenciaram.

E, quando os gritos explodiram ao redor em línguas que eu não conseguia entender, estávamos em perigo.

Seres avançaram na nossa direção e arrancaram nossos disfarces, nos cercando por todos os lados. Erguemos as mãos em rendição, mas algo me dizia que os coletores não teriam piedade. Os gritos das criaturas eram cacofonia pura, porque meu tradutor conseguia captar apenas uma palavra ou outra...

"Joguem eles no sol como o lixo" uns sugeriam. "Não! Nós precisamos dos órgãos!" outros gritavam. "Eu quero a pele!" E então eles começaram a brigar por nossas partes. O tradutor estava esquentando na minha cabeça, sem saber qual a língua que eu deveria usar... E então eu falei na única que pareceu fazer sentido no momento: a dela.

Minha língua replicou os sons e, sem que o humano ao meu lado conseguisse entender, eu gritei:

– Nós somos iátricos! – Uma meia-mentira. – Viemos aqui para ajudá-los! – Uma mentira inteira. E então o silêncio tomou a plataforma. Todo mortal era amaldiçoado por sua finitude; e todos queriam salvação que seres como os iátricos prometiam trazer. Nós só precisávamos construir a ilusão de que a tínhamos... Como sempre fazíamos. – Nós trouxemos suprimentos. Podem conferir. – Apontei com a cabeça para a minha bolsa no chão e a assisti ser atacada por garras, espinhos e ventosas, até que seus conteúdos estivessem espalhados pela sujeira do chão.

– O que está acontecendo? – O desconhecido murmurou.

– Eles acham que viemos curá-los... – Sussurrei em nossa língua, nosso segredo.

– Curá-los de que?!

– De qualquer coisa!

Ele concordou e me encarou como se soubesse o que fazer... Pelo menos um de nós parecia ter um plano.

Os seres que nos cercavam abriram o círculo, me permitindo correr para recolher na minha bolsa os suprimentos iátricos espalhados. Quando eu estava ajoelhada sobre a lama que cobria a plataforma, assisti uma sombra me cobrir. Ergui os olhos devagar para o ser à minha frente e absorvi sua forma: ele era como uma centopeia erguida, com inúmeras patas afiadas partindo do tronco para balançar diante de mim. Seu "rosto" era formado de peças sobrepostas que não se pareciam com nada que eu tivesse antes visto, como se tivesse tentado ser um inseto e se distraído com algumas adições.

– Me siga. – Ele exigiu, na língua que gritei, e eu obedeci.

Enviei um olhar por sobre o ombro para o desconhecido. Ele podia tão facilmente pegar sua nave e me deixar para trás, para ser dissecada pelos coletores depois que meus serviços não fossem mais necessários, já que não era como se eu fosse a única iátrica na galáxia que poderia lhe ajudar... Mas, quando seu olhar encontrou o meu, eu acreditei, por um breve momento, que um humano pudesse não abandonar outro... Que talvez fosse possível confiar.

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