Capítulo 34. Medo

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– Você ao menos matou aquela criatura?! – Lupan guinchou.

– Eu a explodi depois, mas esse não é o foco da história!

– Essas histórias não precisam ter um foco, Phaga! – Korrok gargalhou. – Elas só têm que fazer Deinos se borrar que nem daquela outra vez! – Todos riram como hienas na noite, enquanto Deinos tentava nos convencer de que aquilo que soltara era alguma secreção de medo dos espineros, e não o que pensávamos.

– Essa história não valeu! Nem foi assustadora! – Lupan latiu e Deinos protestou de volta:

– Valeu sim! Você só não quer que conte por que ia perder essa rodada!

– Se o objetivo das histórias é assustar, essa falhou um pouco realmente... – Plumala tentou.

– Está vendo?! Nem a pombinha ele conseguiu assustar!

E a discussão continuou alta na noite.

– Estar sozinho daquela forma... – Doxy sussurrou, próxima de mim o suficiente para que não tivesse de gritar acima da confusão no topo da encosta. – Deve ter sido um pesadelo...

Me voltei para o rosto dela, emoldurado pelo brilho das estrelas no horizonte e sussurrei:

– E eu nem tive de fechar os olhos para vê-lo.

Em seus olhos eu percebi que ela não estava tentando adivinhar se minha história era verdade ou não, porque conseguia ver a resposta por trás. Ela queria que eu soubesse que me entendia de dentro para fora... Que entendia o foco da história.

Me perdi nela por um momento, com o rosto de algo que eu queria proteger, o corpo de algo que eu queria devorar e os olhos de algo que eu deveria temer... Ela me desafiava em cada espectro e eu me perguntava por que ainda não tinha corrido para longe, com fevino e tudo... Eu me perguntava por que tinha a sensação de que ela me corroeria mais do que os vermes sobre o meu cadáver quando eu decidisse partir, mas eu queria ficar para ver, como se viciado à minha própria destruição. Eu precisava continuar, por mais uma dose do que ela tinha a dizer, mais um vislumbre do mel em seus olhos e da pimenta embebida neles, mais um toque seu quando eu estivesse ferido e ela não conseguisse me deixar morrer...

Ela seria minha ruína.

E talvez minha salvação também.

– Não acho que eles entendam... – Ela sussurrou, enquanto assistíamos a confusão. – Acho que eles nunca entenderiam, mesmo que tentassem... Alguns pesadelos só aqueles que os viveram são capazes de temer...

Abri a boca para perguntar quais eram os pesadelos que ela batalhava quando uma pergunta interrompeu a nossa conversa:

– Afinal de contas, aquela história foi real ou não?

– Foi.

– Eu disse! – Lupan comemorou. – Mas um ponto para mim!

Então Deinos o atacou com garras e presas, em uma confusão de bestas.

– Mas e quanto a você, sapiens? – Korrok se manifestou e todos se calaram para ouvi-lo. – Aposto que deve ter alguma história assustadora... Além daquelas em que nós fazemos parte, obviamente. – Ele soltou uma risadinha venenosa e então todos se voltaram para Doxy, atentos e cheios de expectativas.

Ela passou os olhos por todos aqueles que a aguardavam e o silêncio a estimulou a contar sua história em um sussurro na noite, tal qual sua voz partisse das próprias estrelas mergulhadas na escuridão:

– Uma vez eu fechei os olhos e vi algo que não devia... – Ela começou baixinho, como se contasse um segredo. – Poros se rasgando da malha do espaço como bocas famintas para devorar o universo inteiro, o som da morte e do caos gritando pelo escuro do outro lado e ecoando até as bordas da Via Láctea em uma cacofonia incompreensível... – O crepitar do fogo e os murmúrios dos insetos eram a trilha sonora para as suas palavras. – Eu percebi que a Terra era apenas um grão de areia... Enquanto um oceano inteiro se escondia atrás do poro. E, nas profundezas dos seus abismos, nadavam feras marinhas inomináveis, famintas na escassez de suas terras inférteis e sedentas para atravessar para o nosso lado... – Seus olhos estavam vazios com feras cruzando pela escuridão por dentro deles, profecias escorrendo de seus lábios como se o universo a tivesse sussurrado seus pesadelos. – Eu as vi cruzarem para os nossos céus... Vi a escuridão engolir nossos mundos... E então eu vi o fim... – Ela piscou, como se acordasse depois de um milênio para ver os olhos de todos sobre ela, confusos, calados, agora que o jogo já não parecia importar mais. Ninguém ousou fazer alguma aposta, até que ela sentiu que deveria revelar a verdade: – É mentira. – Ela abriu um sorriso tímido. – Foi só uma ilusão...

Endossimbiose | Versão Em PortuguêsWhere stories live. Discover now