Capítulo 4. Emergência

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Meu rosto se voltou para a ambulância, afogada agora até o topo pela neblina. Ela parecia tão distante... Quase como se o espaço estivesse se dilatando entre nós, gerando quilômetros intransponíveis entre mim e o meu objetivo. O chão e as paredes pareciam se mover ao redor, tentando me puxar para o chão inundado e me afogar na névoa. O gás já estava no meu queixo, e meus pés esticados quando eu gritei para a iátrica, atrás de mim:

– O que esse gás faz?!

Eu não recebi resposta.

Encarei o mar branco às minhas costas...

E então percebi que eu estava sozinho.

Ela tinha desaparecido na névoa.

E, antes que eu pudesse falar qualquer outra coisa, minhas pernas falharam e eu também mergulhei.

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O gás não me deixou inconsciente, como eu tinha imaginado, mas me imobilizou. Cada parte do meu corpo tinha se tornado toneladas mais pesado, os olhos tomados pela cortina branca onde sombras turvas se moviam.

A iátrica também estava no chão, tentando se levantar, sem sucesso. Um vulto entrou na minha frente, tão perto que consegui ver suas quelíceras negras, escapando pelos lados da máscara que o protegia da névoa. Seu corpo era um borrão verde limão com minúsculos rios abaixo da pele transparente. E, entre suas garras, repousava uma das melhores armas do Império – algo que teria facilitado a minha vida se eu tivesse em minhas mãos horas atrás.

Vários seres como ele nos rodearem e um que parecia ser feito de gelatina se arrastou na direção da iátrica. Ele parou diante dela e vibrou em padrões estranhos, como se existisse um terremoto que só ele conseguia sentir. Talvez estivesse falando algo, mas eu não conseguia entender, enquanto que as armas apontadas para a minha cara passavam a mensagem bem claramente.

Em algum momento ouvi a voz dela se erguer acima do silêncio atormentador, conversando com a gelatina:

– E isso foi um erro...

O que? Ela estava se rendendo?!

Meu punho se cerrou, lentamente retomando o controle do meu corpo... Quando meus ouvidos foram afogados pelo som seco e potente de um tiro.

Não de novo...

O som.

O sangue.

Meu pai.

Eu estava fugindo.

Os instintos me levando para longe, quando eu não queria ir.

O peito mais vivo do que eu me sentia por inteiro.

Os disparos às minhas costas.

A dor...

O erro.

A força voltou ao meu corpo em uma explosão. E então se excedeu.

O que corria nas minhas veias – o medo, a fúria, o parasita – tomou meu controle por completo... Um monstro abaixo da minha pele que não só me faria sobreviver a mais do que eu conseguiria sozinho, mas também a muito mais...

Seu poder explodiu para fora de mim, rasgando tudo no caminho como se minha pele fosse feita de papel de embrulho. Antes ele estivera escondido em mim, mas agora era eu que estava soterrado nas profundezas, incapaz de ver as fronteiras onde ele terminava e eu começava. Minhas mãos já não eram mais humanas, porque continham um poder que nenhum humano deveria ter e queimavam em um aviso de que, no fundo, aquelas garras não pertenciam a mim. A força da criatura ardeu no meu âmago, demandando que fosse usada na mais profunda destruição... E eu não consegui contê-la.

Ele podia tudo e, fazendo tanto parte de mim quanto sendo estrangeiro, ele me transformava em um deus da morte. Eu podia abrir rachaduras na terra, levantar cordilheiras, explodir continentes, devorar mundos, recriá-los, entender o universo e criticá-lo. Não havia perguntas que eu ousaria fazer, porque não existiam mais dúvidas; não existiam limites, porque tudo que eu queria quando o despertara se realizaria; não existia mais medo, por que nada era capaz de me assustar.

Não havia nada pior do que eu.

Meus membros se tornaram assustadoramente potentes, me impulsionando a cada pulo como se eu fosse mais leve – ainda que muito maior. Eu voava, disseminando trovões a cada choque de minhas patas ao chão e avancei sobre os guardas armados.

Antes eu os achara monstruosos... Mas agora eram tão fáceis de devorar...

O líquido verde abaixo de suas superfícies transparentes pintou minha visão como insetos esmagados no para-brisas dos meus dentes. Uma explosão de sabores desconhecidos tomou minha boca e eu conseguia distinguir o gosto de cada ser. Eu sentia o sabor viciante de seu medo, em cada centímetro da boca que eu compartilhava com a fera, o cheiro de seu pavor, o desespero em cada movimento, o terror em cada grito... E eu estava salivando...

O que ele tinha feito comigo?

Eu me sentia um intruso em mim mesmo, além do intruso que eu já era nesse universo...

Talvez eu realmente fosse o parasita...

Endossimbiose | Versão Em PortuguêsOnde as histórias ganham vida. Descobre agora