Capítulo 3. Parasitas

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Então ele me virou as costas.

Eu tinha me esquecido do quanto humanos traiam uns aos outros... E de que um humano era o último ser em que eu podia confiar.

Mas eu precisava da sua ajuda.

– O parasita vai te matar! – Gritei. Ele parou na porta um passo antes de cruzar para o corredor. E então se virou para mim. – Mas eu sei como impedir...

– Acho que eu consigo descobrir sozinho.

– Você sabe que não. Ou já estaria longe daqui.

Ele se aproximou e, a cada passo, eu me encolhi um pouco mais. Não havia nada que o impedisse que partir meu pescoço ali mesmo como disse que fez com as criaturas do mundo de onde viera; e cada palavra que eu dizia só o deixava com mais vontade, me lembrando da minha mortalidade só com o seu olhar. Ele parou a centímetros de mim, exalando um perigo que me intoxicou.

– Me conte.

Não sei de onde tirei a coragem para dizer:

– Quando estivermos no núcleo da galáxia.

Ele soltou uma risada amarga e passou as mãos pelos cabelos como se os dedos driblassem as correntezas de um rio tempestuoso... E algo me dizia que o que estava em sua mente era muito mais caótico. Quando ele se voltou para mim mais uma vez, nossos olhares desafiaram um ao outro e colidiram-se de longe.

– Teria sido melhor se tivesse me deixado morrer... – Ele resmungou, soltando as minhas algemas com relutância.

– Não comemore tão cedo. Eu ainda posso.

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O Artefato era uma esfera coberta de entalhes que se repetiam em círculos concêntricos, formando símbolos que contavam uma história nunca ouvida, em uma língua desconhecida. Achava-se que ali estivessem escritas todas as respostas para todas as perguntas, ou até mesmo uma receita para algo que ninguém nunca sentiu a necessidade de construir. Nele duas línguas alienígenas conversavam, porque não tinha sido enviado para nós e, de alguma forma, nos encontrara.

Depois de tantos anos na tentativa de decifrar o Artefato, descobriram que ele continha uma ordem, vinda diretamente das estrelas para nós:

"Construam o poro. Risco de extinção".

E, por mais que não soubéssemos o que exatamente era o "poro", não havia dúvidas quanto a "extinção".

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Caminhei pelos corredores com a sombra que ele se tornara e voltamos para a sala do zelador, onde eu guardava algumas vestimentas iátricas, algo que ele precisaria usar para que pudéssemos atravessar o hospital sem sermos percebidos.

Eu o entreguei uma blusa e calça cinzenta e, enquanto ele se vestia, eu afastei os materiais de limpeza – alguns capazes de corroer minha pele se eu não fosse cuidadosa – e retirei um dos painéis na parede, revelando uma abertura onde eu guardava alguns segredos que o Oásis não me deixaria ter, porque tudo que era humano parecia ser tão tóxico. Observei, entre fios e canos, alguns suprimentos iátricos que eu tinha roubado e escondido ali e algo muito mais importante: as cartas da minha mãe. Recolhi tudo rapidamente e, quando me virei, o desconhecido já estava disfarçado de iátrico.

No meu bracelete um mapa do Oásis guiava meu caminho por alas em que eu nunca tinha me aventurado, nos levando até uma ponte que conectava as metades do hospital, completamente tomada por janelas que, por mais que o Oásis girasse em torno do próprio eixo, sempre miravam para o núcleo...

Meus pés pararam por mim, quando meus olhos foram capturados pela visão do lado de fora. Como eu tinha sobrevivido tanto tempo sem vê-lo?

Minhas pupilas absorveram sua luz, se dilatando, insaciáveis, para absorver o brilho das estrelas que se uniam em um braço da Via Láctea e guiavam meus olhos para a confluência no núcleo. Me perdi na paisagem inóspita, ainda que contivesse toda Ítopis, e assisti a luz se esticar para mim como se pudesse me roubar do chão, os dedos de poeira estelar quase se fechando ao redor da minha cintura e a atração gravitacional me puxando para o abismo...

Meu destino.

Mas então o desconhecido tocou meu braço.

Olhei para ele, que eclipsava a janela. Nenhuma lâmpada iluminava o corredor, mas eu conseguia ver cada detalhe do seu rosto, sob as luzes da galáxia. Agora que ele estava acordado eu conseguia ver que seus olhos eram verdes, uma cor rara em lugares como aquele, tão longe das florestas da Terra de que seus olhos me lembravam. O rosto se escondia em parte nas sombras das ondas dos cabelos, mas, mesmo com aquelas roupas, ele não conseguia se passar por um iátrico. Sua pele era marcada demais pelo sol, seus olhos não tinham olheiras de noites mal dormidas e seus cabelos eram mais longos do que eles gostavam, quase caindo nos olhos. Se bem que eu também mantinha longas as mechas negras dos meus... Algumas batalhas eu tinha de vencer.

– Terão visões melhores no caminho... – Ele sussurrou.

Então continuamos atravessando o Oásis e apenas desaceleramos para passar pelo refeitório sem atrair atenção. Eu tinha passado tempo suficiente suturando seu corte para que passássemos ali naquele horário, quando a maioria dos guardas estava descansando, o que diminuía as chances de que fossemos barrados. Eu tinha sido vezes suficientes para saber como não ser mais.

Subimos as escadarias para o topo da construção, onde ficava a garagem de funcionários; aqueles que podiam sair. Mas então, quando o desconhecido acendeu as luzes ao puxar uma alavanca na parede, eu vi as ambulâncias encravadas na parede...

Estávamos na garagem errada.

– Não... – Rosnei. – Elas não deveriam estar aqui...

E, no "manual de sobrevivência" que ofereciam às espécies mais "atrasadas" no Oásis, não estava escrita essa mudança.

– Imagino então que ligar uma delas não estava nos seus planos, então...

– Não. – Confessei, a contragosto. – Eu passei meses coletando amostras genéticas de funcionários para roubar a nave de algum deles... – Já que uma célula era tudo que eu precisava para acessar uma delas. – Mas uma ambulância é outra história...

– Por uma questão de moralidade ou habilidade? Porque só um dos dois consegue nos tirar daqui e eu espero que você tenha só um deles.

– Pelo visto eu não tenho nenhum...

Eu tinha passado tantos meses planejando isso... Quantas noites tinham passado por mim, enquanto eu aguardava a última peça da maquinaria de meu plano sem nunca saber se eu realmente conseguiria executá-lo? Mais do que eu gostava de me lembrar.

Eu quase conseguia ver a desaprovação no rosto da minha mãe, se ela soubesse a situação em que eu estava. Ela sempre dizia que o sucesso era uma mistura de sorte e competência; e, quando o acaso batesse na minha porta, eu tinha de estar preparada para recebê-lo. "Mas e se eu passar a vida inteira com a minha melhor roupa e ele nunca aparecer?" eu perguntava para ela e sua resposta era sempre a mesma: não há nada que você possa fazer, porque só pode controlar a sua parte. Então ela me forjou com o ferro de sua disciplina para que eu estivesse sempre perfeita.

Agora que a sorte me encarava, eu não conseguia não me frustrar. Ela não fazia ideia do quanto eu tinha me preparado... Apenas para que não fosse suficiente.

– Você tem uma faca? – Ele perguntou.

– Por quê? Vai me fazer de refém? – Talvez não fosse uma má ideia. – Ou vai matar alguém? – Não eu, preferencialmente.

– Nenhum dos dois. – Ele abriu o sorriso de alguém em quem eu não podia confiar com uma faca. – Eu vou tirar a gente daqui.

Ergui uma sobrancelha.

Talvez minha sorte fosse suficiente, afinal.

Endossimbiose | Versão Em PortuguêsWhere stories live. Discover now