Parte 3: Vermelho 10 - Uma pequena surpresa

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Marisa mobilizou o grupo e foram todos para a nave central. Nem sombra do surfista. Frustrada, ela desistiu de procurá-lo e resolveu aproveitar a festa, dançando com os amigos até cansar. Depois, outro pit stop no bar para reabastecer. Pois foi só chegar ao balcão e tomar uma água mineral e se abanar, para que Marisa visse no meio da pista... quem? Ninguém menos do que o surfista. Ela o olhou indecisa. Num instante, estava de volta à pista.

Ia industriando a estratégia de ataque. Passaria ao lado do surfista, fingiria surpresa e, com seu melhor sorriso, diria alguma coisa espirituosa. Hmm. O quê? Vejamos. Para começar... oi. Sim, muito bom. Oi. E depois... uma observação sobre o baile? aquela piada do Platão com um ornitorrinco num bar? um comentário sobre as ondas na Austrália...? (Assim ia industriando Marisa, não muito animada com essas opções - ainda que a piada fosse ótima, diga-se de passagem.)

Àquela altura, ir do ponto A ao ponto B demandava um penoso exercício de paciência. Ela avançou com lentidão enervante pela pista, espiando por cima do mar de cabeças para manter o surfista na mira. Conseguiu chegar mais perto e foi rodeando, rodeando. Estava quase lá, quase... De repente, não o viu mais. Onde ele tinha se metido? Onde...? Tudo o que conseguia enxergar eram cabeças e braços balançando no ritmo da música. Quando um homem alto saiu da sua frente, tornou a avistar o surfista - e constatou que ele estava deixando a pista. Marisa foi no encalço dele.

Como um náufrago que atravessa o mar hostil, ela emergiu do outro lado da pista e, cambaleando, aproximou-se do surfista. Alisou os cabelos e ajeitou o cinto, que havia rotacionado quarenta e cinco graus para a esquerda. Aprumou então os ombros. Era agora ou nunca. Será? Olhou-o, dividida entre a atração e uma súbita insegurança. Lá estava o surfista, cabelos ensolarados e camiseta azul, olhos de água-marinha e... a verdade nua e crua.

O surfista beijava a dominatrix platinada (macacão vermelho justo, chicote guardado em casa). Marisa podia quase ouvi-los ronronando. Em face daquela cena dantesca não havia argumento. Ela deu meia-volta e deparou com cinco rostos sorridentes: Valentina, Richard, Brian, Gina e Theodora, que a haviam seguido até ali no rastro de sua impulsividade. Nisso, o palco branqueou com uma bruma de gelo seco, enquanto no fundo o projetor imprimia um céu índigo com nuvens que iam cambiando conforme a percussão eletrônica. Os amigos resolveram ficar por ali.

- Acabei de ver o surfista com a dominatrix - Marisa confidenciou a Valentina.

- Bem que eu desconfiei. Ele parecia muito à vontade debaixo daquele chicote. - Ela balançou a cabeça. - As pessoas têm seus segredos, e uma hora eles fogem do armário.

- E você, Val? Achou alguém interessante?

Valentina tinha ficado com um mau beijador que encontrara no bar. Concluiu que era mais seguro olhar as drag queens desfilando seus vestidos de paetê dourado e turbantes com frutas de plástico. Marisa, aborrecida, apoiou a decisão: as drag queens eram mais divertidas do que os homens. Já havia decidido que naquela noite não ficaria com ninguém.

- A-hã. E se o Jim Morrison levantasse da tumba para ficar com você?

Marisa deu de ombros.

- Nem vem. Hoje eu não vou ficar com ninguém.

Mal sabia ela.

Do alto, duas cascatas de tecido púrpura se desenrolavam nas laterais do palco. Cada uma delas foi escalada por uma bailarina vestida de branco, o saiote de tule flutuando nas nuvens. As duas moças subiam e desciam alternadamente, e enquanto uma firmava os pés no tecido para formar um arco com o corpo perto do solo, a outra se contorcia até virar de ponta-cabeça nas alturas.

A banda entrou em cena, liderada por uma mulata de cabelo comprido trajava um conjuntinho de short e colete preto. À sua esquerda ficou o guitarrista de camisa branca aberta no peito; à direita, o baixista negro de terno e tênis. Ela cantou com voz de pelúcia enquanto tocaram Ride do duo Supreme Beings of Leisure. As nuvens se desfizeram em fiapos de gaze, e no céu limpo despontou a lua.

Os aplausos cascatearam, cresceram e serenaram. Cresceram para a lua projetada fora, redonda como uma hóstia, pristina no céu perfeito de noite americana. Serenaram ao migrar para a lua que se projetou dentro de cada um ali. A lua de dentro embalava os espectadores em seus próprios devaneios e sensações. A música era uma pitada de pó mágico fazendo cócegas nas narinas e mergulhando cada um na música que existia dentro de si mesmo. O momento era agora, o passado e o futuro apenas bruma nas nuvens.

Beauty is all in the ride

Every little change inside

Leads to a major fork

On the road

New horizons unfold

And so does the beauty of the ride

Marisa dançava no meio da multidão sem imaginar que, não longe dali, Marco pedia uma bebida no balcão do bar. Ele assistia ao show com uma curiosidade quase antropológica e, de quando em quando, relanceava o salão e o mezanino. Tinha marcado encontro no baile com a ruiva da feira: Yarina, a imigrante ucraniana dona de um sotaque delicioso com quem havia passado a tarde.

Mas, desde sua chegada ao clube, mais ou menos uma hora antes, Marco procurava por ela sem êxito. Até que avistou uma menina de preto bem na frente do palco. Por baixo de seu gorro de lurex, escapava uma massa de cabelos acobreados. Marco não conseguiu ver o rosto da moça. Seria Yarina? Só havia um jeito de descobrir.

Esvaziou o copo e embrenhou-se na pista de dança. Passou ao lado de Marisa no instante em que ela se virava para cochichar algo com Valentina. Um espectador empurrou-o contra Marisa, e seus braços se tocaram. Ela virou-se num reflexo quando ele já desaparecia na multidão. A única pessoa do grupo a reparar em Marco foi Brian, que lhe dirigiu um olhar apreciativo e depois voltou a se concentrar no guitarrista de camisa aberta.

Marco levou longos minutos para chegar à ruiva de preto. Quando finalmente a alcançou, constatou que se tratava de uma menina mais jovem de olhos acinzentados. Ele relanceou a multidão comprimida às suas costas e preferiu ficar ao pé do palco. O trio voltou duas vezes para o bis antes de sair de cena sob uma cortina de luz estroboscópica e fumaça. Enquanto o DJ reassumia a cabine de som para tocar um set de breakbeats, parte do público foi debandando da nave central e Marco voltou para o bar. Marisa, àquela altura, já havia se retirado para o banheiro com Valentina.

Marco permaneceu no bar até que a multidão começasse a se dissipar. Eram quase duas horas e ele considerou a possibilidade de voltar ao hotel. Estava ficando cansado... Seu olhar perambulou pelo recinto e de repente ele avistou, no mezanino, o perfil de uma ruiva de blusa verde. Ela sumiu de vista num instante. Dessa vez, porém, Marco soube que havia encontrado a ucraniana.

Voou para as escadas e contornou o mezanino até o outro lado. Sondou os rostos que iam e vinham, esquadrinhou as pessoas sentadas nos sofás. Afinal, avistou Yarina conversando com uma amiga ao lado de um vaso de rosas desmaiadas. Nisso sua atenção foi irremediavelmente atraída para uma moça de preto debruçada no parapeito.

Com a câmera do olhar, ele foca sua silhueta, filma seu movimento.

Pernas de bailarina, vestido curto e colante, um cinturão de correntes. O perfil de máscara e o manto cor de avelã do cabelo. As mãos se encontram atrás da nuca, erguendo o cabelo numa onda para ela se refrescar. A luz vai escorrendo e dourando os fios. A corrente dos braceletes roça a tatuagem tribal, uma rosa estilizada. É nova. Sobrepõe-se à marca de nascença.

Mesmo assim, ele a reconhece.


VERMELHO: Uma História de AmorWhere stories live. Discover now