Parte 3: Vermelho 19 - O círculo se fecha

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Livros, CDs, LPs, notebook, tablet, MP3, maleta, relíquias de família, quadro abstrato, DVDs do Woody Allen, roupas (incluir jeans esfarrapado e terno Armani), sapatos, panela de barro de estimação, pedido de demissão, transportadora, depósito para armazenagem, doações, venda do carro, locatário para o apartamento, procuração, visto de trabalho, pai-de-santo para ler o futuro nos búzios...

Não, o pai-de-santo era brincadeira.

Marco deixou a mala ao lado da porta, largou a mochila na mesa de centro e alongou o corpo dolorido no sofá. Tinha saído de férias sem nenhuma expectativa e voltava de mãos cheias. Os planos para abrir sua escola postergados indefinidamente, talvez para sempre. A mente agora em alvoroço. O coração de novo trincado. Ar, chumbo, veneno. Ele fechou os olhos.

Pensou nas células de um organismo que se regeneravam até a completa renovação do corpo. Então, um dia, tudo amanhecia novo e paradoxalmente igual. Marisa era a mesma, ele era o mesmo, e os dois eram pessoas diferentes daquelas que se conheceram um ano antes. Se fosse sincero, teria que admitir que da primeira vez havia renunciado a ela por culpa e - sim - por medo. O medo paralisante de que um dia Marisa fosse Lorena e lhe virasse as costas, deixando-o com um mundo arrebentado nas mãos. E a culpa dobrada, triplicada ao machucá-la justamente por não querer machucar.

Agora a ferida mal cicatrizada reabria.

O corte latejava nele também, latejava com a mesma pulsação, a mesma intensidade. Porque havia nele um corte igual, exatamente no mesmo lugar, como um espelho negro, como um triste irmão siamês. Ferida - uma ilha no meio da carne sã, vermelha e viscosa, enviando para a corrente sanguínea a infecção, infectando tudo. Rio sujo, latejar nas veias. Peçonha.

 Não suportaria passar por aquilo de novo.

Da primeira vez já havia sido um esforço tamanho, porque ele precisava lutar não só contra sua própria vontade como também contra a vontade dela. Seria mais fácil se Marisa é que tivesse rompido o vínculo. Cada vez que ela telefonava, era um suplício manter-se firme na sua resolução. Cada vez que desligava a dúvida vinha assombrá-lo. Quando adormecia Marisa o visitava em sonho. Quando acordava, ela não estava ali.

Não suportaria passar por aquilo de novo.

Viver com a dúvida do que poderia ter sido. Dessa vez, algo dentro dele resistia com todas as forças à ideia de se afastar de Marisa.

Queria acontecer com ela.

Desdobrar-se.

Desembrulhar cada momento trivial, cada surpresa.

Existir.

Todo dia.

Com ela.

Mas.

Lâmina afiada.

Palavra tão curta, corte tão agudo.

Mas.

O que ele podia oferecer a Marisa? Citações literárias, teorias. Uma maleta cheia de acessórios inúteis. E uma existência longe de tudo e de todos - uma existência que talvez ela viesse a detestar. Marisa amava o sol e a praia. Era óbvio que não se adaptaria ao Canadá. De longe tudo exalava o perfume da aventura. De perto havia o mau cheiro da adaptação: frio, falta de família e amigos, desconforto para comunicar-se em outro idioma.

Pessoa dizia que a língua era a pátria, e era mesmo - como cobertor macio, comida de mãe, sapato confortável. Marisa não teria nada disso. E aí?

Já conhecia esse filme. Era tão previsível quanto o experimento de Pavlov. Você condicionava um cão com uma campainha antes de alimentá-lo, e logo o animal estava sempre salivando quando escutava a campainha. O mesmo acontecia com as pessoas. Se você as colocava numa situação desagradável, elas começavam a associar você com sentimentos desagradáveis. Marisa passaria a associá-lo com o frio, a solidão e suas frustrações. E o detestaria por isso. Então era melhor que o detestasse desde já sem o fardo de um sonho desfeito.

VERMELHO: Uma História de AmorWhere stories live. Discover now