Parte 2: Negro 4 - A Doutora Spitzer

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Ela perdeu-se num dédalo de corredores que dobravam e desdobravam na direção dos quatro pontos cardeais, até não saber mais se estavam indo para a frente ou para trás. Marisa sentiu-se um rato de laboratório. Quando parecia que nunca alcançaria seu destino, passou diante da porta com uma placa de metal afixada: Dra. Rebeca C. Spitzer — Psicanalista. Tocou a campainha do interfone, identificou-se, e a porta se abriu com um zumbido elétrico. Uma câmera sobre o batente monitorou seus movimentos quando entrou na sala de espera deserta.

Após um momento de hesitação, Marisa foi sentar-se num sofá de palhinha posicionado entre duas cadeiras. Examinou as revistas espalhadas na mesa baixa à sua frente, mas só encontrou publicações francesas de psicanálise. Deixou então os olhos vagarem até a outra extremidade da sala, onde havia uma porta ao lado de um aparador enfeitado com um arranjo de antúrios vermelhos.

A visão daquelas flores luzidias, inchadas, sanguinolentas, deixou-a um tanto perturbada. Desviou o olhar para a aquarela pendurada logo acima delas, uma tela quadrada que exibia um círculo negro contra um fundo branco. Ficou a fitá-la, um pouco intrigada, até que a Doutora Spitzer emergiu de sua sala e acenou para Marisa.

O que melhor definia a psicanalista eram os olhos: duas impenetráveis fagulhas verdes ampliadas pelos óculos com armação de tartaruga, que se prolongava no mesmo tom acobreado dos cabelos curtos. O tailleur e os escarpins eram cinza. A idade, indefinida, ao contrário da postura: ao preceder Marisa na sala de consulta, em vez de andar ela marchou.

O verde-claro das paredes sugeria repouso. Numa delas se recostava o divã encimado por uma pintura quase idêntica à exposta na ante-sala, com a diferença que, aqui, as cores se mostravam invertidas: um círculo branco contra o fundo negro. Nos pés do divã, Marisa notou uma manta cuidadosamente dobrada e uma caixa de lenços de papel. Uma escrivaninha de linhas sóbrias e duas poltronas de couro caramelo preenchiam o resto da saleta.

A Doutora Spitzer ocupou uma das poltronas e fez sinal para que se instalasse na outra. Tinha modos enérgicos e expressão arguta.

— Muito bem — começou. — Agora você vai me contar seu problema sem omitir nenhum pensamento que lhe ocorra enquanto estiver falando. Aqui tudo é importante. Está vendo aquele quadro? — Indicou a aquarela sobre o divã. — O que ele retrata?

Marisa refletiu um instante. A esfera, deduziu, devia ter algum significado associado aos mistérios da psique. Estudou a imagem atentamente, de cima a baixo, de um lado a outro. Por fim, respondeu com cautela: 

— Um círculo branco.

Irradiando um sorriso que conjugava perspicácia e triunfo, a terapeuta meneou a cabeça.

— Aí é que você se engana. A imagem compõe-se de um círculo branco e também de um quadrado negro, mas a maioria das pessoas só percebe o que está em primeiro plano. Fazendo uma analogia, o círculo branco representaria o conteúdo manifesto dos seus pensamentos. O fundo negro abrangeria recalques, neuroses, tudo aquilo que se situa além do plano consciente. O inconsciente, veja bem, é o solo fértil dos simbolismos: é assim que ele se comunica com a consciência. Nesse terreno movediço, por exemplo, o sexo feminino pode ser representado por uma caixa. Ou uma bolsa de crochê.

— Ah…

— Mas vamos ao que interessa. E lembre-se: potencialmente, tudo o que você diz ou pensa significa outra coisa.

— Ah…

Sem saber ao certo como iniciar seu relato, Marisa umedeceu os lábios, pigarreou, mexeu numa mecha de cabelo e começou a trançá-la. Num reflexo tardio, escondeu discretamente sua bolsa de crochê debaixo da poltrona. A Doutora Spitzer a observou com expressão e mutismo de esfinge. Aquele silêncio vigilante fez Marisa ter vontade de confraternizar com a bolsa debaixo da poltrona.

Como explicar o inexplicável? Uma semana havia transcorrido desde o inquietante episódio na faculdade, e ela ainda não compreendia bem o que lhe acontecera. Lampejos traziam-lhe à memória um caleidoscópio de cenas isoladas, que não conseguia ordenar numa sequência coerente...

... A confusão na sala de aula depois do seu desmaio. A fuga desatinada no campus. Seu reflexo na vidraça. O homem atrás do arbusto. O mãe desesperada, como num dramalhão mexicano. A corrida ao hospital, onde fora receitado um calmante de tarja preta tanto para ela quanto para a mãe...

À medida que Marisa relatava o incidente, revivia os pormenores com inquietante nitidez. O pior foram os comentários que se espalharam pela faculdade depois. Colegas de classe declararam que ninguém espreitava pela janela. O segurança afirmava que, de fato, vira Marisa passar correndo. Não havia homem nenhum no seu encalço.

— Então você imaginou tudo — concluiu a psicanalista.

— Ao que tudo indica, sim. Mas podia jurar que... aquele homem parecia tão real... — Marisa fez cara de choro. — Será que eu estou ficando louca, doutora?

— Trate de se acalmar. O desespero não vai resolver nada, precisamos atacar o problema de forma racional. O que desencadeou a crise?

A terapeuta entrelaçou os dedos e reclinou-se solenemente, aguardando a resposta. Marisa balançou a cabeça, sem saber o que dizer. Sua mente rodopiou mais uma vez, povoada de imagens desconexas…

Torceu as mãos, perturbada.

— Estou com medo — ela desabafou.

— Medo de quê?

— De tudo.

— Seja mais específica.

A Doutora Spitzer lançou-lhe então um olhar que quase devassou sua alma. Marisa afundou na poltrona e relanceou o céu notuno na janela. Estremeceu. A noite lhe dava claustrofobia. Teria preferido outro horário, mas a agenda da psicanalista estava lotada. Desviando o olhar da janela, Marisa tentou refletir. Dizer algo que fizesse sentido.

coisa, explicou ela, havia começado com um vago desconforto sempre que entrava num elevador. Ficou obcecada com a teoria da queda dos corpos, achando que o elevador iria despencar. Seu mal-estar foi se expandindo, incorporou viadutos, pontes, penhascos. Agora tudo se fundia no mesmo pavor. Medo de acercar-se de janelas. Medo de sofrer um acidente de carro. Medo da escuridão. Medo dos sons, medo do silêncio. Um perigo impalpável espreitava aonde quer que fosse.

Não havia para onde fugir. O perigo morava dentro dela.

— Você está com medo das suas emoções e teve um ataque de pânico, só isso — a Doutora Spitzer diagnosticou sem pestanejar.

— Um ataque de pânico?

— Calma.

Calma? Marisa fitou-a em desespero.

A Doutora Spitzer devolveu-lhe um olhar imperturbável. Consultou o relógio de pulso dourado e anunciou:

— Nosso tempo se esgotou.

VERMELHO: Uma História de AmorDonde viven las historias. Descúbrelo ahora