Parte 1: Branco 7 - Chuva tropical

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Marisa resistiu à tentação de comentar com Valentina que havia encontrado o professor de literatura no Paraíso Perdido. Costumava contar tudo à amiga, mas dessa vez teve escrúpulo. Na maneira como Marco a olhara, Marisa captava algo que ela mesma conhecia muito bem. Algo que devia ser respeitado: suscetibilidade. No dia seguinte, durante a aula, cada vez que os dois trocavam um olhar, era com a cumplicidade por um segredo compartilhado e a curiosidade por outro não revelado. Marisa tentava adivinhar qual desejo oculto levara Marco à loja. Ele fazia a mesma indagação sobre a ela.

Chegavam ao fim de outubro, e aquela terça-feira era um típico dia chuvoso de primavera, ainda irresoluto entre os estertores do inverno e as tempestades de verão que se avizinhavam. Depois das aulas, quando se afastava de carro pela rua, Marco avistou uma silhueta de cabeça baixa num vestido lilás. Ele abriu o vidro da janela, e grossas gotas respingaram em seu rosto quando chamou Marisa para oferecer uma carona. Ela correu para o Lexus numa confusão de cadernos, bolsa e roupa colada no corpo. Seu alívio por sair da chuva durou o tempo de se transformar em embaraço: no confinamento do carro, os vidros agora se embaçavam com vapor e tensão.

Depois do encontro no Paraíso Perdido, depois dos olhares velados na sala de aula, lá estavam os dois espremidos numa caixa de metal. Sozinhos. Subitamente constrangidos. Falaram do tempo e Marisa queixou-se de ter esquecido o guarda-chuva bem naquele dia. Marco ligou o aquecedor e ela murmurou um agradecimento. A conversa esmoreceu. A chuva tamborilou no capô cinza-metálico. O trânsito rastejou penosamente.

— Você fez o teste vocacional? — Marco perguntou após alguns minutos.

— Não, eu… esqueci…

Marisa deu-se conta da extensão da apatia escondida dentro dela. Na verdade, não se importava mais com a faculdade e o futuro. Desde a morte do pai, ela já havia abandonado as aulas de dança e o coral. Como não podia abandonar o colégio também, Marisa entorpecia-se no estudo para esquecer que a vida não tinha sentido. Sua alma se empoleirava numa ameixeira como Pierre Anthon, gritando silenciosamente que nada importava. A vida era um desfile de platitudes, acordar de manhã e escovar os dentes, cumprimentar o porteiro ao sair do prédio e depois ao retornar, exultar com uma redação bem feita e desesperar com equações de trigonometria, ansiar pelo futuro, decepcionar-se com o futuro, fazer as refeições, enfeitar-se para o fim de semana, dormir e acordar de novo, até o dia em que acordar já não era mais opção. E nesse meio tempo, tudo o que uma pessoa mais amava ia se apagando até restarem apenas as mãos vazias.

A dor sufocada veio à tona. Primeiro uma contração no peito, depois o tranco na garganta e a vista queimando. Ela estava lá de novo. Pela primeira vez. Caminhando ao lado da mãe na alameda pavimentada de cimento e folhas secas. Param diante de um retângulo de grama nova com uma lápide de granito negro. Ela lê na inscrição o que não quer aceitar. O nome e as datas. Então é assim. De uma vida inteira, isso é o que fica. Nunca mais verá o pai. Nunca mais. O céu escurece, os pinheiros se curvam no vento e as buzinas dos carros na rua vêm de muito longe — de um mundo do qual ela já não faz parte. A mãe a abraça em silêncio, catatônica. Marisa chora. Olha os santos tristes que vigiam as sepulturas prometendo a felicidade eterna. Fica com raiva. Raiva da vida que lhe roubou o ente mais querido e prossegue sem ele, raiva do pai que a deixou, raiva de si mesma porque não foi capaz de salvá-lo. Raiva. Jura que não vai verter nem uma lágrima.

Quase cumpriu a palavra.

Marco ficou desconcertado quando a viu enxugar uma lágrima tortuosa na face. Crispou as mãos no volante e observou Marisa pelo canto do olho. Melhor ficar quieto para não constrangê-la. Ela mordia o lábio, continha-se. Ele relaxou… mas logo ela soluçou e aquela lágrima se desdobrou em pranto estridente.

VERMELHO: Uma História de AmorOnde as histórias ganham vida. Descobre agora