Parte 2: Negro 6 - Círculo branco, quadrado negro

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Marisa via a Doutora Spitzer nas noites de segunda, quarta e quinta. Na sexta não saía: ficava cismando. Que emoções eram essas que lhe davam tanto medo? Ela pensava na tela negra do inconsciente. Aí tentava se concentrar em suas emoções e só conseguia pensar numa tela branca, igual àquela pintura na antessala do consultório. Uma tela imaculadamente branca. Ou talvez (seguindo o raciocínio da Doutora Spitzer) fosse uma tela embranquecida pelo véu do medo: um quadrado branco que escondia por baixo o quadrado preto do inconsciente. Um quadrado branco enegrecido porque dissimulador. E que, assim, podia ser interpretado como um quadrado preto que mascarava o quadrado branco que mascarava o quadrado preto…

Marisa estava ficando com dor de cabeça de tanto pensar.

E nem tinha chegado nos círculos ainda.

Ela deitava no divã e falava da mãe, recordava o pai, sacava reminiscências empoeiradas das gavetas da memória. A Doutora Spitzer escrevia e escrevia no seu caderninho preto. Até que naquele final de junho Marisa teve um sonho catártico, verdadeiro divisor de águas em seu tratamento, que foi torrencialmente interpretado pela hábil psicanalista.

— É uma noite de lua cheia — relatou Marisa. — Estou seguindo um vagalume numa floresta. Chego numa casa branca às margens de um lago rodeado de pinheiros. As janelas estão vedadas por tábuas, mas a porta está destrancada. Eu entro... e logo me vejo num corredor escuro com muitas portas... Tento alcançar a primeira porta, só que o corredor vai se esticando, esticando...

Ela umedeceu os lábios ressequidos. Dentro do peito, o coração se encolhia ao reviver as cenas...

— De repente, a porta surge na minha frente e uma voz cavernosa me chama... Marisa! Fujo assustada para a segunda porta. Ela se escancara e eu entro num quarto com um tanque de cristal translúcido... A porta range atrás de mim e aparece um gato preto. Ele mia... e na mesma hora o tanque se parte em mil pedaços. No meio dos estilhaços, encontro um papelzinho com uma equação insólita... V1² = V2² ± 2 g.h - ∞... O papel cresce nas minhas mãos até se transformar numa porta corrediça...

Marisa interrompeu-se com um calafrio. Não gostava de relembrar aquela parte. A Doutora Spitzer murmurou que era interessante e, sem erguer os olhos do caderninho, instou que ela prosseguisse. Com um suspiro, Marisa obedeceu:

— Foi então que eu soube... Aquela era a fórmula para calcular a velocidade da queda do meu próprio corpo. Ouvi o professor de física me convocar com sua voz cavernosa: Marisa, o experimento vai começar! Entre já no elevador… A porta deslizou para o lado e eu... entrei...

— E depois?

A porta fechou-se de um golpe. Ali dentro estava frio e o ar era uma neblina. Como um Santo Graal envolto num halo de luar, um buquê de antúrios flutuava no meio do elevador. Ela estendeu o braço para pegá-lo e, tão logo suas mãos o tocaram, a luz tremulou. As sombras despregaram-se das paredes, cresceram até o teto e formaram um círculo. Marisa apertou freneticamente o botão para abrir a porta, até ele saltar do encaixe e rolar a seus pés… A escuridão ficou mais profunda. O terror a dominou, desesperou-se. De repente, Sérgio emergiu do anel de sombras. O primeiro impulso de Marisa foi recuar… Então mudou de ideia. Esquecida das sombras e do pavor, levantou os antúrios e deu com eles no ex-namorado.

Quando acordou, tinha destruído o buquê inteiro na cabeça de Sérgio.

A Doutora Spitzer quis saber mais sobre ele. Marisa contou que os dois se conheceram em uma festa e ele parecia perfeito: moreno e alto, expansivo, carinhoso, estudante de administração de empresas. Faziam planos de casar depois que ele se formasse, e a mãe dela o adorava. Até que Marisa o flagrou com a instrutora de mergulho. Foi uma das experiências mais horríveis da sua vida. Sérgio estava passando o fim de semana em um sítio, na despedida de solteiro de um amigo. Voltaria à noitinha no domingo.

VERMELHO: Uma História de AmorOnde as histórias ganham vida. Descobre agora