Parte 3: Vermelho 8 - A feira de fetiches II

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Marco passou pela arena onde a dominatrix amarrava um gordo de careca brilhante, em cujas costas rastejava uma tarântula de pelos. Aquele estofo natural dificultaria o trabalho do chicote, pensou Marco. Não parou. Pouco adiante, avistou uma arena tocando música alta, onde marmanjos em fila esperavam a vez para ser fustigados por duas garotas de short e miniblusa branca. Eram bonitas as meninas, biótipo latino com cabelos longos, nádegas esculpidas e piercing no umbigo. Ali armava-se uma comoção, pois uma delas agora agitava a chibata e perguntava fazendo beicinho: Quem vai ser a próxima vítima? Quem, quem? Curioso, Marco se deteve.

Todos os marmanjos levantaram o braço, menos um. E foi bem o dono daqueles braços inertes que as anfitriãs escolheram como voluntário: um nerd de camisa amarelo-pastel e óculos de aro preto como seus cabelos,que foi simultaneamente puxado por elas e empurrado por dois amigos que o acompanhavam. Lá estava o rapaz com seus vinte anos, paralisado por uma timidez atroz e sorridente, prestes a se iniciar nos mistérios da chibata - isso era quase tão emocionante quanto a partida do Dungeons and Dragons em que ele encalhou numa ilha cheia de demônios e... bom, mas essa é outra história.

As garotas decidiram trabalhar em dupla nele. Uma desabotoou-lhe a camisa e a outra a removeu. Fizeram o nerd apoiar as mãos no encosto de uma cadeira prateada e mandaram ver. As pulseiras em seus pulsos giravam como alegres bambolês à medida que elas escreviam zeros e oitos com açoites de tiras cor-de-rosa, zeros e oitos que se iniciavam no ar e terminavam nas costas leitosas do voluntário. As duas se alternavam, gingando os quadris tão loucamente quanto gingavam as mãos, e assim foi durante toda a música que tocaram para ele (Horny as a dandy com The Dandy Warhols e Mousse T. talvez?).

 

So now it's all in the clear

I can't wait another minute

Baby you know I'm in it

 

You're my Technicolor dream

Streaming in colorful places

With oh so many faces

 

Sweet dream in Technicolor

Techni-Techni-Technicolor

 

 

O rosto do nerd (inchado, vermelho, suado) agora proporcionava um excelente objeto deestudo de expressões faciais. Ao analisá-lo, um cientista escreveria um ensaio sob o título "A epistemologia da flagelação pública na modernidade". Ou algo assim. Introversão, espanto, arrebatamento e toda sorte de bifurcações emocionais desfilavam no semblante antes anêmico do rapaz. Por trás dos óculos, seus olhos giravam em sincronia com as chibatas. Vapt, vapt, vapt! Smack, smack! No final, sua boca se escancarou e despachou o sorriso de um iogue franzino nos braços do nirvana - as meninas açoitavam o moço com os próprios cabelos e finalizaram a sessão com um beijinho no rosto dele. O público aplaudiu, e Marco umedeceu os lábios. Todo aquele entusiasmo tinha lhe dado sede.

Enquanto seguia pela rua apinhada, ele observou os trajes extravagantes dos frequentadores da feira. Marco vestia-se da forma mais casual possível, de calça e camisa jeans - discreto, não alardeava suas preferências. Não pôde deixar de sorrir. Era a terceira vez que comparecia a um evento daquele tipo e ainda se surpreendia ao ver os desejos mais íntimos expostos como um espetáculo de variedades. Uma certa dose de humor dourava o impacto dos tabus que se escancaram por toda a feira.

Um homem envolto numa nuvem de plumas vermelhas esvoaçou com uma placa que anunciava: Jesus te ama. Foi andando pela rua emparelhado com Marco e, no momento em que ele e suas plumas dobraram a esquina, a vista ficou livre para descortinar um estande onde uma loira se deitava de bruços numa mesa. A moça, vestida como líder de torcida, estava imobilizada por um arranjo de nós górdios. Marco diminuiu o passo para registrar os pulsos presos aos tornozelos e o par de pernas de marfim, a minissaia azul e o rabo-de-cavalo com um pompom rosa: fetiche e inocência unidos por uma respeitável metragem de corda branca.

VERMELHO: Uma História de AmorOnde as histórias ganham vida. Descobre agora