Parte 1: Branco 2 - Hobbits e desvios sexuais de A a Z

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- Os alemães estão aqui!

Foi precisamente essa frase que desenferrujou a roda da fortuna e a colocou em movimento com um tranco naquele instável agosto de 2012, precipitando os acontecimentos até que os caminhos de Marisa e Marco se cruzassem. Para entender o que a frase tinha a ver com os dois, é necessário primeiro conhecer seu autor: Aécio Palamedes, o antigo titular da cadeira de literatura do colégio. Uma ruína de pelancas, Palamedes beirava os noventa anos de idade e já era figura folclórica na área. Mesmo aposentado, ele insistia em lecionar. Foi ficando na escola, os anos passaram e ninguém nunca questionou sua permanência ali.

Vale mencionar que quando era jovem - muito, muito, muito tempo atrás, antes mesmo de ele descobrir sua inclinação para a licenciatura - o Professor Palamedes havia combatido os alemães na Itália durante a Segunda Guerra Mundial. Esse fato o marcou para o resto da vida, e ultimamente trazia-lhe reminiscências mais vívidas do que o enevoado presente do indicativo. Durante as aulas, com a mão trêmula e o dedo em riste, ele se perdia em digressões que inexplicavelmente circum-navegavam a poética parnasiana para aportar, em meio a uma explosão pirotécnica de granadas, na Batalha de Monte Castelo.

Pois numa manhã, no final de agosto daquele ano, dois carros bateram bem na frente do colégio. Ao ouvir o estrondo, Aécio zurrou:

- Os alemães estão aqui! - E entrincheirou-se debaixo da mesa, até que dois bedéis conseguiram arrancá-lo dali uma hora mais tarde.

A diretoria finalmente o afastou de suas funções por tempo indeterminado. Contratado para substituí-lo, Marco Aurélio entrou em cena três semanas depois. Era uma quinta-feira apagada - os alunos escreviam bilhetinhos, bocejavam, sonhavam com o fim de semana - e não demorou para o zunzunzum se espalhar pelos corredores como rastro de pólvora (para usar a terminologia predileta de seu predecessor).

- Você viu o novo professor de literatura, Val? - Marisa perguntou a sua amiga Valentina durante um intervalo

- Ainda não. Mas tenho certeza de que vou adorar ele. Eu não aguentava mais aquela conversa sobre a Batalha de Monte Castelo.

- Pois eu acabei de ver ele entrando na sala dos professores. O colégio fez um upgrade completo: ele é lindo - disse Marisa.

- Contanto que não fale da guerra nem me mostre ferimentos de granada no pé, eu vou achar ele lindo também - foi a réplica da amiga.

Marco certamente trazia um sopro de renovação ao ambiente rígido do colégio. O próprio espaço físico da escola já dizia a que viera. Construído como um presídio cercado de muros altos, era todo cimento. Para a circulação entre os três pisos do prédio principal, havia duas escadarias: no passado, uma era reservada às meninas e a outra aos meninos. Décadas e mais décadas de conservadorismo tinham-se entranhado nos muros, paredes e pisos da instituição.

A aura progressista do novo professor de literatura, aliada a seu intelecto privilegiado, resplandecia com um fulgor irresistível ali. Logo em sua primeira aula, passou a ser cobiçado por nove entre dez colegiais. Marco tinha exatos vinte e nove anos e uma desconcertante covinha no queixo quadrado. Alto e bem-proporcionado, com carismáticos olhos orlados de cílios negros, ele era como o deus ex machina que surgia com sua didática (e outros dotes extracurriculares) para salvar as garotas do infinito tédio.

Lá estava ele no pódio, um Clark Kent de pernas longas e mãos enfáticas que abria a camisa para revelar o Homem de Aço com um toque da sensualidade atormentada do Cavaleiro das Trevas, da majestade olímpica do Deus do Trovão e... (aqui, cada aluna suspirava e completava a linha pontilhada com suas preferências, que podiam abarcar desde o sorriso de Johnny Depp até um suculento prato de morangos com chantilly). Naquela aula inaugural, a literatura renasceu das cinzas da Segunda Guerra Mundial e Marco conduziu os alunos numa jornada por diferentes épocas - partindo da Antiguidade de Homero, quando as palavras eram emendadas nos manuscritos e diferenciadas apenas pela inicial maiúscula, até alcançar a era digital, caracterizada pela atomização da linguagem em inimagináveis contrações.

VERMELHO: Uma História de AmorOnde as histórias ganham vida. Descobre agora