Parte 3: Vermelho 5 - O Kashmir Lounge

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O véu da noite caía lentamente sobre São Francisco. À medida que o céu rosado ia desfalecendo, as luzes da cidade pouco a pouco acordavam e a temperatura mudava. Bastava o sol se pôr para o sopro do Pacífico clamar as ruas só para si, com seu hálito gelado que fazia chacoalharem os dentes e empalidecerem as vidraças. Ele vinha de roldão, imiscuindo-se sem cerimônia nas frestas dos casacos, fazendo cócegas na ponta do nariz e mordendo calcanhares. No desespero, não era raro o pedestre que buscava refúgio no café mais próximo.

Lá no alto, o Airbus A322 proveniente de Los Angeles varava as nuvens no céu cor de fogo, preparando-se para completar o voo 940. Instruídos pela comissária de bordo, os passageiros conservaram o cinto de segurança afivelado e sua poltrona na posição vertical. A temperatura local, segundo o comandante, era amena: 55º Fahrenheit, ou 13º Celsius. A aeronave sobrevoou a estrutura iluminada da Bay Bridge e a Ilha de Alcatraz, emparelhou com a Golden Gate Bridge e fez meia-volta em mar aberto, tomando o rumo da pista de pouso às margens da baía. Minutos depois, aterrissava pontualmente no Aeroporto de São Francisco. Eram 19h45.

Do outro lado da cidade, Marisa assistia ao espetáculo do anoitecer através da janela hexagonal da sala de estar. Os vidros já começavam a embaçar quando ela recuou e estudou o ambiente perfumado com potpourri de flores. Diante do móvel de madeira que abrigava o equipamento de home theater, um imenso sofá bege aguardava pacientemente a próxima sessão de cinema. A mesa de centro, estofada com a mesma camurça, era sua fiel escudeira e ponto de parada transitório para duas caixas de bombons sortidos.

Marisa sorriu consigo mesma. Pelo jeito, estava tudo pronto para o sábado à noite. A julgar pelos sons que vinham da cozinha, sua anfitriã estava em plena atividade com as alquimias de um jantar especial para o marido que não tardava a chegar (hoje, os cheiros que se espalhavam na casa sugeriam leitão assado e torta de cereja). Depois de comer, o casal costumava confraternizar no sofá com dois gatos siameses, vendo tevê madrugada adentro.

Seus anfitriões formavam um par engraçado, pensou Marisa. Mrs. Stevenson era uma mulher grande e rechonchuda de sessenta anos, com cabelos curtos tingidos de loiro, bochechas rosadas e olhos azuis cheios de vivacidade. Mr. Stevenson era seu oposto, um senhor pálido, pequeno e circunspecto, de cabeleira branca e tímidos olhos azuis. Ela gostava de comédia e ele, de drama. A uma certa altura os dois discutiriam sobre a escolha do filme e, sem chegar a um acordo, acabariam vendo algum reality show.

Enrolando a echarpe de oncinha em volta do pescoço, Marisa alisou a calça jeans nova e abotoou a jaqueta vermelha comprada aquela tarde numa liquidação. Pegou a bolsa a tiracolo.

Goodbye, Mrs. Stevenson! — despediu-se, descendo a escada que levava à rua.

Goodbye, honey. Have fun! — respondeu a anfitriã, com sua voz rouca vinda dos fundos da casa.

O curso de inglês tinha terminado, e já não era sem tempo! Durante as duas últimas semanas, Marisa e Valentina quase se afogaram numa maratona de imersão total, com aulas práticas e teóricas que se estendiam da manhã até a noite. A imersão havia adentrado também o fim de semana anterior, com a programação turística de praxe sob a tutela dos professores: fazer uma visita guiada à prisão de Alcatraz; andar de bonde até o Fishermen’s Wharf para comer peixe frito, ver os leões-marinhos do Pier 39 e comprar camisetas com os dizeres I love San Francisco; explorar os jardins exóticos do Golden Gate Park e o De Young Museum, terminando o passeio nas areias da Ocean Beach; e, claro, atravessar a Golden Gate Bridge na van turquesa-metálico de Miss Clark para uma parada estratégica no morro descampado do outro lado da ponte — junto a um grupo de turistas japoneses — para admirar a belíssima paisagem da baía, tendo a metrópole ao fundo e as águas de prata riscadas por veleiros… Clic, clic, clic. E tirar uma porção de fotos.

VERMELHO: Uma História de AmorWhere stories live. Discover now