Parte 1: Branco 11 - Contato imediato do terceiro grau

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Toda discrição era pouca. No colégio, Marisa e Marco mal se falavam. Mas em certos momentos, quando não podiam ser detectados, enviavam carícias à distância. E mensagens pelo celular.

Marco: Você fica muito bonita de turquesa. Gostei da sua blusa.

Marisa: É nova. Comprei pensando em você.

Marco: Derruba sua caneta no chão.

Marisa: Para quê?

Marco: Assim eu posso admirar o decote.

Ela sorriu, erguendo os olhos. Ao seu redor, os colegas estavam entretidos preenchendo um questionário sobre a obra de Clarice Lispector. De cabeça meio baixa, os olhos fixos em Marco, Marisa espanou a caneta com o braço até que ela rolasse para o assoalho. Aí curvou-se, deixando que uma das alças da blusa lhe escorregasse do ombro. Pegou a caneta, aprumou-se sem pressa e fingiu concentrar-se no questionário.

Sentado à mesa na frente da sala, Marco ocultava seu celular atrás de um livro aberto (um estudo de Giles Deleuze sobre a obra de Sacher-Masoch, comprado na véspera). Endereçou a Marisa um olhar de seda antes de voltar a digitar.

Marco: Sua blusa quer dar uma volta hoje à noite?

Marisa: Minha blusa precisa terminar uma redação quando voltar para casa. Mas não deve demorar muito.

Marco: Ótimo. Pensei em convidá-la para jantar num bistrô fora da cidade. Um lugar decorado com antiguidades à luz de velas. Você acha que ela ia topar?

Marisa: Ia, sim… Aliás, você sabe que ela preparou aquele doce que você gosta e te comprou um presente? Minha blusa encontrou no ebay uma coisa que você queria muito. Mas ela não devia estar contando nada disso, sabe? Devia fazer uma surpresa. É que ela não se aguenta, essa blusa boba.

Marco: Não vai me dizer que é aquele álbum raro da… ah, não pode ser… e cheesecake de limão…?

Marisa: Desculpa, meu querido, mas os lábios dela agora estão selados.

Ela tornou a levantar os olhos e encontrou os de Marco, que brilhavam de entusiasmo. E curiosidade — ele era bem, bem curioso. Marisa sempre fazia aquele jogo. Gostava de ver sua reação. Havia tempo que Marco não se relacionava com alguém, e acolhia as atenções dela com um contentamento quase exagerado. Isso, claro, deixava Marisa com um contentamento quase exagerado também.

Aquela noite foi uma exceção — o céu sarapintado de estrelas e os dois na estrada deserta rumo a uma cidadezinha não muito distante, famosa pela produção de arte e artesanato. O minúsculo bistrô tinha meia dúzia de mesas e ficava à beira de uma escadaria que unia duas ruas na encosta de um morro. Lá, Marco e Marisa provaram vinho de uma safra especial, dividiram suflê de chocolate na sobremesa e esqueceram a preocupação de ser vistos juntos: era terça-feira, dia improvável para jantares românticos fora da cidade. Antes de retornar, deram um passeio nos arredores, vagando por alamedas de quaresmeiras roxas e brancas.

Aquela foi a exceção. A regra, nas noites em que Marisa não estava estudando, era os dois saírem pelos bares e comerem em entrepostos árabes. Ou então iam ao cinema: assistiram de mãos dadas a Tudo pode dar certo e Meia-noite em Paris, de Woody Allen, além de uma sessão especial de Psicose, de Hitchcock. O par, entretanto, costumava ficar pelas imediações do Centro, pois o pessoal do colégio raramente frequentava aquela área à noite. Ali estava o coração da capital mais próspera do país, palpitando loucamente durante o dia e hibernando após o horário comercial.

Era irônico que, em seus primórdios, a cidade fundada pelos jesuítas em 1554 não passasse de um grão de poeira que qualquer vento mais forte poderia varrer do mapa. Foi por pura sorte que uma sementinha de café — descendente de outra trazida clandestinamente ao país — caiu na terra roxa do estado. Com a explosão do “ouro negro”, a capital entrou no século vinte com ares de dama rica e o charme do Velho Mundo. Seu lema tornou-se Non ducor, duco: “Não sou conduzida, conduzo”. A partir do Centro, São Paulo foi crescendo. Crescia tanto, que nem dava tempo de colocar todas as suas ruas no mapa. Um sem-número de casarões antigos foi demolido para dar lugar a arranha-céus e, doze milhões de habitantes mais tarde, a cidade continuava se metamorfoseando.

VERMELHO: Uma História de AmorWhere stories live. Discover now