VERMELHO: Uma História de Amor

Parte 3: Vermelho 9 - O baile no Devil's Lair

A noite espargia azul nas colinas de São Francisco e dourado nas águas da baía. Da janela do quarto Marisa contemplou as casas vitorianas na rua, suas fachadas de cor pastel perfilando-se contra a última espiral de magenta no céu,. Ela sentiria saudade do bondinho, das omeletes com cogumelo e dos fins de tarde como aquele. Empurrou a vidraça e inspirou o ar permeado com sutil cheiro de sal. Demorou-se ali um minuto e então deu meia-volta.

O quarto de hóspedes que lhe coube era pequeno e confortável, mobiliado com uma cama de casal e criados-mudos encimados por um abajur lilás e um cestinho de potpourri de lavanda. O ambiente se impregnava com ecos de nostalgia graças a um pôster antigo do Golden Gate Park sobre a cabeceira e ao armário de carvalho que havia pertencido à avó de Mrs. Stevenson.

Marisa acercou-se dele e escancarou suas portas. Hora de aprontar-se para o Leather Dream Ball. O convite de Richard e Brian para a festa tinha sido inesperado, e ela não sabia bem o que vestir. Era o típico pesadelo de toda mulher. Marisa rezou em voz alta: Ó meu Deus, me dê inspiração para combinar as cores...

E aí tirou um vestidinho preto do cabide.

Colocando-o diante do corpo, tentou avaliá-lo com objetividade científica. Fez uma careta. E, num frenesi, pôs-se a revirar o armário inteiro, erigindo sobre a cama uma montanha de peças descartadas que faria inveja a Maomé. Voltando ao vestidinho preto, Marisa decidiu usá-lo com um conjunto de bijuterias prateadas e uma máscara preta de cetim. Estudou-se no espelho. Hmmm... Enfim satisfeita, entrou no chuveiro.

Uma hora depois, Valentina, Richard e Brian vieram buscá-la no conversível vermelho. Parecia uma reprise daquela tarde, mas agora a capota estava levantada e os anfitriões vinham mais à vontade. Richard apareceu todo de preto: jeans, camisa de manga curta, jaqueta e tênis de couro. Brian sublinhava as abdominais de pilates com uma calça preta skinny e uma camiseta colada de lycra laranja. E Valentina, quase irreconhecível sob uma pesada maquiagem, usava um macacão stretch bordô, botas e jaqueta de couro, além de um quepe emprestado de Richard.

- Que arraso, Val. Só falta o chicotinho - disse Marisa, deslizando junto a ela no banco de trás.

- E você não está nada mal com essa máscara. Estou vendo que não dispensou o salto treze também. Grandes possibilidades...

Ah, o Leather Dream Ball: um sonho entretecido em couro, esse material tão polivalente para provocar os sentidos - segunda pele ressaltando o instinto animal, sussurro e lustro opalescente em movimento, cheiro de almíscar, gosto de pecado. Naquela noite, o couro vestia, despia, transitava e dançava num paraíso underground chamado Devil's Lair. De propriedade de um excêntrico milionário do Vale do Silício, o clube ficava próximo ao centro da cidade e ocupava as instalações de uma velha igreja com fachada de tijolo aparente. Seu interior gótico encerrava um amálgama de referências díspares: a cenografia de um filme B com síndrome de personalidade múltipla.

À entrada, os convidados eram recepcionados por um altar de vodu montado em uma mesa circular. Ali se avultava uma cruz de madeira cravejada de pregos enferrujados, rodeada por caveiras, imagens de orixás e amuletos gris-gris. O visitante então precisava circundar a mesa para aceder ao salão retangular com seus lustres de ferro e lâmpadas bruxuleantes. Uma galeria se desdobrava de cada lado, encimada pelo mezanino e separada da nave central por arcos e colunas. Projetores lançavam uma teia de luz e sombra nas paredes cinzentas e no palco montado sobre o antigo altar.

Valentina e Marisa debruçavam-se sobre cada detalhe exclamando um oh! aqui e um ah! acolá. Richard contou que conhecia o dono do clube. Bob era fã roxo de filmes de terror e mangás. Sem contar que dançava mal pra burro. Imagine que ele conseguia a proeza de pisar no seu pé várias vezes de uma tacada só, até quando estava dançando sozinho uma música disco.