Parte 1: Branco 8 - Lançando o dado

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Faltava um mês e meio para o fim do ano letivo: 13 de dezembro era oficialmente o último dia de aula e a festa de formatura estava marcada para a noite seguinte. Marco queria esperar. Mas acabou acontecendo depois de uma semana, quatro cafés furtivos e um almoço de domingo que se prolongou em conversa tarde adentro. Aconteceu naturalmente, como a chuva naquele dia e o brilho no olhar deles.

Era o primeiro encontro de Marisa e Marco sem pressa. Ele abriu uma garrafa de Merlot e, enquanto terminava de preparar uma tiella de legumes, os dois compartilharam histórias de família e lembranças. Falaram do numeroso clã dele espalhado pelo interior (dois irmãos, sete tios, dezessete primos, doze sobrinhos) e da família dela que vivia na cidade (segunda geração de emigrantes franceses, dois tios, quatro primos, nenhum irmão ou sobrinho). Falaram da primeira vez que ele andou na Champs-Élysées e do dia em que ela não pôde subir à Torre Eiffel por causa de uma marcha de protesto.

Ela lhe contou de uma palestra sobre a Roda da Vida do budismo, ele lhe explicou sobre arquétipos e a jornada do herói rumo à consciência. Esses assuntos se alternavam com outros triviais, como o micro-ondas dele que precisava ser trocado e o horóscopo do jornal largado na cadeira (a mulher de Libra teria uma surpresa e o homem de Escorpião enfrentaria uma dificuldade familiar). Na conversa, um simples comentário sobre o tempo coloria-se de encanto: o que importava não eram as palavras mas as entrelinhas - naquela linguagem que só os amantes conhecem, até a frase mais banal forjava cumplicidade.

- Nós podemos ir a Alto Paraíso no Carnaval - Marisa ia dizendo. - Você conhece?

- Só de foto. Tem cachoeiras, não é?

- Tem o Vale da Lua. Um dos lugares mais lindos que eu já visitei. Uma extensão de rochas que parecem crateras lunares, com vegetação em volta e piscinas de água turquesa no meio. As rochas são incrustadas com pedacinhos de cristal verde que brilham no luar.

- Vamos lá, sim, Mari. Se você gosta de cachoeiras, a gente também pode visitar os Lençóis da Bahia na Páscoa. Ah, você não conhece? É uma cidadezinha maravilhosa com casario colonial e...

Lá fora rolavam as gotas de chuva; aqui dentro, as notas de piano de Chopin. Marisa perguntou o que estava tocando. A Valsa no. 14 em E menor. Vamos dançar, Marco. Ah, Mari, eu não sei valsar. É muito fácil, Marco, vem cá que eu ensino... Ele de pé sorridente e sem jeito, ela espevitada e didática. Posição: uma das mãos nas costas do parceiro (aqui, perto dos ombros) e a outra afastada do corpo segurando a mão do par. Vamos lá. Um, dois, três... E eles foram rodando em volta da mesa, um, dois, três, passando pelo fogão e pela geladeira, um, dois, três, esquerda-direita-esquerda, o pé deslizando no giro, agora os armários e o balcão, um passo à frente para ele, um passo trás para ela, de novo a geladeira, um, dois, três, um, dois, três...

A Valsa do Minuto entrou e apressou o ritmo, e de repente rodopiavam na Paris romântica do século XIX, ele de casaca preta, colete e gravata-borboleta, ela de vestido verde com os ombros de fora. Dançavam em um salão de baile azul de teto abaulado, numa cintilação de arandelas e lustres de cristal. As paredes com altos-relevos folheados a ouro floresciam em arranjos de rosas coloridas. Um, dois, três, um, dois, três, girando e girando no azul dourado cristal, dentro do arco-íris em flor, até que o cheiro de manjericão fresco se espalhou pela cozinha. Na São Paulo do século XXI, o almoço estava pronto. Marco retirou a travessa do forno e acendeu uma vela para avivar a mesa.

Eles sentaram-se contentes e, enquanto comiam, falaram de livros e autores prediletos, tantos, que até perderam a conta. Marisa recordou A pequena Fadette de George Sand, que seu pai lera para ela quando era criança. Marco surpreendeu-se com a coincidência: a autora era um dos amores de Chopin. A conversa passou à poesia e ele foi ao escritório buscar um livro antes da sobremesa - que, de qualquer modo, os dois só provariam bem mais tarde. Era uma coletânea de poemas concretos de Augusto de Campos, que Marisa adorou. Vida (a palavra repetida formando um labirinto)...  Folhearam o livro, mais um gole de vinho, mais um beijo. No ar Debussy e Claire de lune, o gosto de uvas e algo mais, outro poema, o tempo sem tempo de uma carícia. Então aconteceu.

VERMELHO: Uma História de AmorOnde as histórias ganham vida. Descobre agora