A janela que sorria para Amani & o cariz

34 1 18
                                    

É uma amena manhã. As cortinas azuis-claras, anelares e cheias descem pomposas pelas janelas de correr da nossa cozinha, nas quais o sol esbate-se meio enfraquecido e invade em feixes, finos feixes o cômodo claro, reluzente, deveras limpo; fico com a impressão de que ele orgulha-se de si mesmo e sorri. Bem brilhante.

À época, ainda sou pequeno. Esta lembrança é uma das raras da infância que eu gosto de trazer à memória e com ela, fingir que não faço parte desse mundo. Ela especificamente me oferece um bom colo, ou para mim também é como se fosse um ombro bom para tirar um cochilo, quando me lembro. Como o ombro da mamãe. Porque não. Aqui não é minha casa. Nunca foi. Que nem a mamãe queria me fazer acreditar, junto à minha irmã, quando esta envelhecera mais um pouco. Ainda aprendia a andar. Meu caminhar era estranho. Sem querer, eu tinha muitos tiques motores. Como mover a cabeça, como se dissesse sim ou não o tempo todo. Piscar os olhos. Eu imitava uma abelha. Até grunhia. Isso assustava muito minha irmã. Às vezes ela ria de mim, mas a mamãe a olhava feio, pedindo pra Ahjeli parar.

Eu sorria como pensava que aquela cozinha me sorria de volta toda vez que olhava em volta. Com meus dentinhos parecendo pedrinhas à mostra. Alguns não nasciam inteiros.

Eu pontilhava até a cozinha e mamãe me ajudava a subir na cadeirinha de refeições para tomar o café da manhã. Comia frutas que adoravam que eu fizesse caretas, como laranjas. E me lambuzava inteiro dos gomos em bagaço. Outras vezes, bebia suco de limão com pouco açúcar e biscoitos compridos Maizena. Ou um mingau espesso de milho. Maçãs em fatias também.

Mamãe se estressava um pouco comigo, isso é, para não dizer que pouco é pouco, que não era, não. Ela tinha raiva porque eu não parava quieto na cadeirinha, fazia meus barulhos habituais e me remexia todo. Ahjeli sempre ria. Mamãe não me odiava, não. Mas era difícil pra ela. Eu dava muito trabalho, eu sei.

— Ah, Amani, pare quieto, pare, pare quieto já! Tsc! — era o que ela dizia, negando com a fronte.

— Pare, pare quieto! —, eu repetia, batendo as mãos no apoio onde Ludji punha as tigelas de mingau, biscoitos e suco fresco para mim.

— Olha, mãe! O Amani fazendo nojeira! Eca! — minha irmã mais nova caçoava. Quando eu olhava as minhas mãos, todas preguentas e sujas de comida, eu ria.

— Sujo, sujo! Eca! — eu as espalmava e mostrava, enquanto meus outros tiques se manifestavam.

Luedji perdia a paciência muitas vezes. Ela cansava de tentar me alimentar num grau de normalidade. O que eu faço é atípico mesmo para um adulto de 25 anos agora. Quiçá para uma criança que descobriu ter Tourette quase que tardiamente demais, ou seja, antes dos sete. Mamãe desistia de me alimentar vezes demais e por impulso ou frustração que devia decerto consterná-la, acabava passando a tarefa para Ahjeli.

Se tinha uma parte boa nisso tudo, era que ao menos com ela eu conseguia disfarçar meus tiques. Outra coisa é que não precisava tentar ficar encarando Luedji. Por que nossa mãe gritava tão alto para que eu "parasse de brincar e fazer coisas com a minha cara"? Devia pensar que tudo era teatro meu desde a infância. Mas não, cara. Não era. Nem à época e nem agora. Agora eu compreendo que mamãe me amava e esforçava-se para me deixar feliz embora tivessem que lidar de maneira diferente quando se tratava do Amani.

Com pouco, minha mana também parou de rir, passando a entender que o que eu tinha era uma síndrome. E não que eu só a fazia rir de propósito. Estudamos juntos o fundamental inteiro. E ela me defendia dos moleques que queriam que eu parasse de fungar ou bater a coxa esquerda numa das hastes de ferro da carteira e vinham nos dizer que eu tava querendo deixá-los malucos fingindo ter uma deficiência. Não tinha ritmo ou hora para acontecer. Eu só ficava preocupado demais de me notarem. Logo eu, em meio aos trinta outros alunos da classe. E aí acabava que eu tinha vários espasmos de uma vez por estar tão ansioso.

Contos para se emocionar: porque amor de mãe é infinitoWhere stories live. Discover now