Mães do Alvorecer

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Aviso: Esta história é fictícia e apresenta questões sensíveis sobre o luto.

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#PRATODOSVEREM 👁️| banner de cor branca. Ao meio, ilustração de dois pés envoltos por uma asa de anjo e uma pequena auréola acima do pé direito.

Nada se compara a dor de perder um filho, é excruciante, devastadora, é literalmente como perder um pedaço de você, e eu perdi o meu, meu filho. Mal pude segurar meu anjinho nos braços, sentir o cheiro suave do perfume de bebê e amá-lo incondicionalmente. Ele se foi cedo demais.

Meu menino, Benício, nasceu com Síndrome de Edwards¹. As poucas horas que passamos juntos foram contadas, na UTI neonatal, onde meu amado filho lutava para respirar, com ajuda mecânica, enquanto seu fraco coração ameaçava desistir a cada instante do dia.

Sete dias, sete dias de completo desespero. Não consegui dormir, comer, respirar sem pesar, viver... Cada lufada de ar que passava pelo meu peito era cortada pela preocupação, pelos pensamentos aterradores, pela desesperança que insistia em pairar sobre minha mente. Quis mesmo, com todas as forças do meu coração, acreditar que Benício sobreviveria por alguns anos, ao menos a primeira infância, se as alterações congênitas ocasionadas pela trissomia do cromossomo dezoito permitissem, mas, no fundo, sabia que ele partiria mais cedo ou mais tarde. Sendo portador de uma doença genética rara, com baixa expectativa de vida e órgãos em falência múltipla, dificilmente resistiria até o primeiro mês de vida. E ele não resistiu.

No oitavo dia, eu segurava sua mãozinha, meu indicador preso entre os dedos flexionados dele, e a outra mão repousava ao lado da cabeça de diâmetro inferior ao desenvolvimento do corpo também pequeno. Todo o meu corpo tremeu, as lágrimas lavaram o rosto assim que nossas mãos desataram, o sentimento lúgubre transpassou meu ventre de imediato. Não queria acreditar, não queria abrir os olhos e ver que seu peito não subia e descia mais; tentei desesperadamente ignorar os bipes das máquinas — o som da vida se esvaindo —, a equipe médica e os enfermeiros entrando no recinto para me tirar dali, para tentar salvar quem não podia ser salvo.

Ele se foi, Benício se foi para sempre. E ele levou consigo parte de mim.

Todavia, não houve um sequer segundo que não esteve comigo, na minha memória, no meu coração. Desde o momento que descobri a gravidez até a fatídica e amarga despedida, pensei nele, o amei, cultivei a expectativa de vê-lo dar o primeiro passo, me chamar de mamãe, agarrar na barra da minha calça quando fosse para creche, pedir conselhos amorosos, ansiei por apoiar suas decisões, porém tudo isso ficou na imaginação.

Sonhei com o meu primeiro dia das mães. Este ano não passaria sozinha, eu teria um alguém com quem compartilhar sorrisos e lágrimas de felicidade — pensei —, mas meu Benício não está aqui. Minha mãe também não, não a conheci, só as histórias da sua incansável luta pelo povo indigena, Rosalinda foi uma ativista ferrenha, assassinada por garimpeiros ilegais aos vinte e oito anos. Eu tinha cinco anos quando perdi minha mãe, e achei, por toda a minha existência, que essa era a pior dor que sentiria, então meu filho neomorto veio para me preencher de alegria por nove meses maravilhosos e provar que estava errada.

As dores ainda não poderiam, nem deveriam ser comparadas, perder quem nós amamos nunca é fácil, o vazio é perturbador, tão profundo e silencioso. Um poço sombrio, sem fundo visível, onde enfiamos o luto, a fim de não nos afogarmos na própria angústia e desalento.

Eu mergulharia de cabeça no maldito poço com pesos amarrados aos tornozelos se me dissessem que esta aflição me abandonaria, sem pensar duas vezes. Afinal, na véspera do dia das mães, isto é, no terceiro dia sem meu filho, continuava vagando pelos corredores do hospital, me agarrando a última imagem dele com vida, mesmo que fosse na incubadora.

Não, não era reconfortante, na verdade, era agonizante. Vi mães saírem com seus filhos nos colos, saudáveis e vivos, comemorando, e outras tão despedaçadas quanto eu, seja porque aguardavam a notícia igual a que me dilacerou, ou porque perderam quem mais amavam no mundo inteiro.

Além disso, não me sentia bem neste local, mas acabava por ser o único lugar em que não estava sozinha. Havia uma casa para a qual voltar no fim do dia, entretanto minha casa se tornou grande demais para a pessoa que sou agora e que diminui minutos após minuto, gradativamente, reduzida ao solene e eterno padecimento de uma mãe, uma mãe sem seu filho.

Naquela maternidade, por ironia do destino, encontrei meus piores pesadelos e minha salvação. Em pleno dia das mães, o dia que passei a odiar nas últimas setenta e duas horas e voltar a ter esperanças alguns instantes atrás, conheci Cristina, uma adolescente de dezesseis anos, dez anos mais nova que eu, com um bebê prematuro nos braços. Sozinha no enorme hospital, perdida, desamparada, sem fazer ideia de como proceder nos próximos três meses necessários para completar o tratamento da sua filhinha. Enxerguei, através das lágrimas que ofuscavam seus olhos castanhos, uma saída, a minha saída.

E, hoje, faz cinco anos que a Mães do Alvorecer nasceu, a ONG direcionada às mamães que perderam seus filhos, natimortos ou neomortos, as guerreiras que enfrentam meses na UTI, torcendo para levar os pequenos para casa e mães de crianças que nasceram com doenças genéticas raras. Assim, visando constituir uma rede de apoio mútua entre as famílias, informar, auxiliar na vivência e fortalecer os laços maternos. Foi a M.A que me manteve de pé depois de perder o meu bebê, ajudar outras mulheres que passaram pela mesma situação foi a única coisa que, de certa forma, apaziguou um pouquinho da minha dor e não me deixou esquecer jamais que sempre serei mãe, mãe de um anjinho.

Escrito por: @vaiescrevermaria


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Glossário:

Síndrome de Edwards¹: é uma doença genética rara, caracterizada por um cromossomo autossômico extra na posição 18, que gera inúmeras alterações físicas e intelectuais, havendo a possibilidade de aborto espontâneo, nascimento sem vida e morte do recém-nascido nas primeiras semanas de vida, cuja só uma pequena parcela sobrevive ao primeiro ano de vida. 

Contos para se emocionar: porque amor de mãe é infinitoWhere stories live. Discover now