Mamãe rua

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Nasci aos seis anos quando acordei debaixo de um viaduto, enrolada num cobertor, deitada num papelão e desmemoriada. Fui acordada por Rui, que acabou por se tornar meu grande amigo e hoje, meu sócio. Ele me ajudou muito e foi ele que me apresentou todas as mamães.
    
     Hoje sei tudo isso, pois já estou com
21 anos. Na época não entendia o que era ter família, embora minha mente soubesse muita coisa, não lembrava de nada.
      Fui vendo outras crianças crescendo, tendo pai e mãe e eu não tinha ninguém. Pelo menos que fosse família, mas tinha amigos, um muito especial, o Rui, que me ensinou a sobreviver na rua, depois que me acordou no meu primeiro dia nas ruas.

      Eu estudei junto com outras crianças, debaixo do viaduto, numa escola improvisada. E pediam pra fazer redação de dia dos pais e eu inventava mil estórias, baseadas no que via das famílias que moravam sob o viaduto, onde eu também morava.

     Hoje eu já faria diferente, sendo dia das mães, eu faria assim:

           Dia das mães

     Amo muito minhas mamães, elas cuidaram de mim muito bem.

     De manhã vinha a mamãe do café, paravam a Van e ela trazia pão com margarina e café com leite quentinho pra mim. Me abraçava e perguntava se eu tinha dormido direitinho, depois me dava uma garrafinha dágua e ia embora e só voltava dois dias depois, mas no dia seguinte tinha outra mamãe, essa outra era tão boa, que sempre trazia pacotes de biscoito Maizena só pra mim.
    
     Tinha também a mamãe da hora do almoço, ela trazia quentinha, com comida gostosa, mas essa não vinha todo dia.
    
     A mamãe da noite, trazia sopa  e também um pão pra comer com a sopa. Eles traziam cobertores e era muito bom.
    
     A mamãe que me vestia, vinha com o padre e trazia roupas que eu podia escolher, passava uma semana com a mesma roupa, daí ela vinha e me dava outra, me deixando limpinha depois de me lavar com água de uma garrafinha.
    
     Mas a mamãe que mais gostava, era a da Kombi da igreja evangélica. Essa mamãe me abraçava tão gostoso, contava histórias da Bíblia, sempre tinha uns lencinhos perfumados pra me limpar. Ela cortava meu cabelo e minhas unhas. Trazia sapatos e até um colchonete ela me deu. Linda essa mamãe.

     Mas a minha mamãe de verdade, só conheci agora que a polícia me pegou. Essa mamãe, quando me viu, não me reconheceu, não me aceitou, ela ainda guardava na mente, a imagem daquela menininha que tiraram dela, delicada, bonita, de pele macia e trejeitos bonitinhos. Ao contrário disso, encontrou eu, uma lutadora de MMA. Bronca, grossa, toda ferida e cheia de cicatrizes, vindo de uma luta clandestina, onde fui presa.
    
     Não pude fazer nada por ela, não me lembro dela e como me trataram com tanta decepção ( ela até virou a cara quando me viu), fiquei foi com raiva dela. Depois ela quis me transformar, comprando um monte de roupa, providenciando documentos e querendo me adaptar a sua vida vazia.
    
     Eu não sou linda ou cheia de pompa pra comer, mas sou limpinha e tenho propósitos justos na minha vida.
     Sei que ela sofreu muito esse tempo todo, depois que me sequestraram, mas não posso fazer nada pra remediar isso, não tenho culpa de ter sido sequestrada e nem de ter vivido nas ruas.

     Onde ela estava, aliás, onde todas estavam, quando aquele homem nogento, me agarrou, espancou e estuprou no chão de uma Van e depois me jogou na calçada como se fosse lixo? Eu só tinha oito anos.

(Vou abrir um parêntese aqui). Nós meninas que crescemos nas ruas, sempre sofremos esse tipo de crime, porque isso é um crime. Eu passei dois dias escondia num buraco debaixo do viaduto, abaixo dos alicerces da subida. Não tinha condições de sequer levantar, estava muito ferida, até o Rui e o Edu me acharem e cuidarem de mim. Eu não tinha registro, nem pai e nem mãe de verdade e se fosse ao hospital, me levariam presa em uma tal de custódia protetiva.

    
    
     Mas voltando a mamãe verdadeira, essa mamãe ainda tá na minha lista de mamães reserva.

     Mas se tenho que escrever sobre aquela que foi minha melhor mãe, se tenho que elogiar aquela que me recebeu sem restrições de raça, credo, classe social, registro de nascimento ou cobrança de qualquer forma, vou falar da melhor:

     A Mamãe Rua!

Ela me recebeu quando ninguém me queria, simplesmente me jogaram em seus braços sem dar satisfação.
Ela me guardou em baixo de suas marquises, me alimentou com o que recebia de doações.
Me deu estudo, companheiros, aulas de defesa pessoal, me ensinou a ser perseverante, paciente, resiliente. Compartilhou comigo seus segredos e o que é melhor, me escondeu em suas sombras.

     Escondida em suas sombras, pude me esgueirar e observar tudo e todos, sem ser observada. Lutei pelo meu espaço e aprendi a ser forte, a trocar os nãos pelas realizações.
     Aprendi capoeira, box, jiu-jitsu e Kung Fu. Assim me tornei conhecida nas lutas de rua, depois nas lutas clandestinas e fui caçada, isso mesmo, caçada por um idiota justiceiro das ruas, também andarilho das sombras da minha mãe rua. Mas ela me escondeu tão bem, que ele só me pegou quando me deixei ser encontrada.
    
     Graças a ela sou uma lutadora na vida e uma lutadora dos ringues.
     Ganhei muito dinheiro, pois ela me mostrou que precisava de ajuda. Resolvi montar uma academia e ajudar crianças, que como eu, estão sozinhas pelas ruas. Mamãe rua gostou disso e continuou me protegendo. Nunca mais um ceboso tocou em mim. Mamãe rua me mostrou onde aquele estava e dei um corretivo nele, mas não sei quem chegou depois de mim e aproveitou e o extinguiu da face da terra.

     Mamãe rua me mostrou vários outros fazendo a mesma coisa, tentando fazer, pois também dei um pau neles, desculpe aí a maneira de falar. Mamãe rua me ensinou a ser educada. Agradecer, pedir por favor, dá licença, bom dia, boa tarde, boa noite e até me desculpar se fosse o caso.

      Hoje não moro mais com mamãe rua. Tenho minha academia e minha moradia. Mas nunca vou esquecer seus ensinamentos e nunca vou deixar de agradecer por ela ter cuidado de mim, quando parecia que ninguém me queria e que a dor não teria fim. Sim, até aí ela cuidou de mim.

      Obrigada Mamãe Rua, daqui pra frente vou ajudar você a cuidar de outras como eu e torna-las vencedoras, porque você me fez assim. Talvez elas não sejam lutadoras de ringue, mas com certeza, na vida, elas vão lutar e conquistar, porque você Mamãe Rua, soube me educar.

     Sou uma lutadora vencedora da vida e uma lutadora vencedora de MMA!

Por Deyse Pires.

Contos para se emocionar: porque amor de mãe é infinitoWhere stories live. Discover now