Meu pescoço dói.
Este é meu primeiro pensamento pela manhã quando me movimento na cama agora vazia. Respiro fundo e penso em voltar a dormir. Eu ainda tinha um dia até começar o trabalho no teatro, até as aulas, até segunda feira. Parecia um desperdício levantar agora que a cama era minha.
Mas eu não conseguia dormir de novo, a voz alterada berrando na sala de estar não deixava.
– O que foi isso? – o tom feminino me fez suspirar. Essa não era minha primeira vez sendo acordado pelos berros de uma das mulheres de Damien. Tento cobrir meu rosto com o travesseiro, alguma esperança de paz ainda me restava.
– Damien, eu estou falando com você. – Tenho certeza que ele já ouviu, porque eu, com certeza, estava ouvindo. Me sento e esfrego os olhos preguiçosamente, noto a brecha da porta do quarto aberta e pergunto se Damien não deveria cobrir o festival de produções independentes dos nossos veteranos. Ele e Pedro ficaram responsáveis pela organização do evento. Ele poderia levá-la, discutir em outro lugar.
– O que você viu era o que estava acontecendo, eu dormi com o Caio, o que tem de mais?
Meu coração falha uma batida, mas apenas uma. Até eu me lembrar exatamente sobre o que tudo aquilo se tratava.
– Isso parece natural?
– E por que não seria?
– Isso é esquisito, você sabe que ele é...
Coço a cabeça. Muitas palavras poderiam completar aquela frase, mas eu apostava que a que ela queria tinha pouco a ver com eu ser ranzinza ou mandão.
Gay assumido. Poderia ser isso.
Eu também sou era apaixonado pelo namorado dela, e mesmo que eu não falasse me voz alta ela poderia ter percebido. Suspiro.
Qualquer uma das opções que ela pudesse apontar seriam verdadeiras.
– A melhor pessoa que eu conheço? – é como Damien escolhe completar as palavras da garota. E eu poderia realmente me comover com isso. De verdade, sabe? Camila ou Carolina entendeu errado, não seria a primeira vez que alguém entendia errado, e eu tinha certeza que Damien explicaria exatamente o ponto central do mal entendido.
Nós dormimos abraçados? Sim.
Nós dois fodemos a noite toda? Não.
Mas a verdade é que eu gostaria disso.
– Dizer isso na minha frente é ok? – ela grita, a voz parece chorosa. Escuto atentamente o diálogo, não havia outra escolha e eu duvidava seriamente que esta, me fazer ouvir, não era a intenção dela com aquilo. Eu entendia, não estava ofendido.
– Estou sendo honesto.
Ele não estava
– Eu o amo.
Ah, bom.
– Mas sabe, é diferente. Vem aqui.
Será que eles poderiam acabar? Eu precisava mesmo ir ao banheiro.
Espero por algum sinal, qualquer barulho suspeito. Nada. Então movo as pernas devagar para fora da cama e caminho lentamente até a porta.
Minha bexiga ia explodir se eu não fosse agora.
Giro a maçaneta devagarinho, tentando poupar a casa de qualquer ruído.
– Caio é como um irmão, espero que você possa aceitar isso, eu não vou mudar.
A frase não tem poder de me parar, o discurso era velho, ultrapassado, gasto.
Ele sempre dizia essas coisas.
Por Damien ser essa pessoa, eu jamais, nem por um segundo, abaixava a guarda. Ser um irmão estava de bom tamanho para mim, mesmo que meu coração dissesse o extremo oposto. Atravesso o corredor em silêncio quando ouço o som da cerâmica se partindo contra o chão, o barulho me faz virar a cabeça. Minha caneca em pedaços não muito longe de onde eu estava.
Dou um passo adiante, meu coração acelerando sem consentimento.
Merda, merda... o meu presente.
– Ele estava ouvindo. Damien ele se escondeu para nos escutar.
Não olho para Damien, eu simplesmente encaro o chão. Cada caquinho branco pelo piso refletia muito de como eu me sentia vendo aquilo.
Meu presente de seis meses era especial.
– Caio – é a voz de Damien que soa próxima e me faz levantar os olhos devagar.
– Me desculpe – pisco algumas vezes, tentando recobrar a voz. Eu não sabia porque a caneca me feriu, mas ela o fez. Eu segurei a respiração bravamente e tentei não parecer mais chocado que estava.
– Está tudo bem – respondo.
– Me desculpe, mas você poderia sair por algum tempo? Algumas horas. Eu só preciso resolver as coisas com Camila.
– Como é? – ele olha para trás e logo se volta a mim.
– Daqui algumas horas eu e ela vamos ao evento dos veteranos. Você ia com Lucas, certo? Pode nos dar um momento de privacidade aqui para... resolvemos as coisas?
Me afasto um passo, atordoado.
– Preciso ir ao banheiro. Faça o que quiser.
Dou passos largos para longe, sentindo meu peito esvaziar.
Repito para mim, que aquela não era a primeira vez, aquele era meu melhor amigo, aquilo não tinha nada demais.
Eu podia sair e dar alguma privacidade, certo?
Jogo água no rosto e tomo um banho rápido, quando apareço na sala Damien e Camila estão tomando café. Tudo parece melhor para os dois.
Saio batendo a porta atrás de mim e torço para que Lucas esteja a caminho, ele ia me ajudar a limpar o apartamento, poderíamos ir ao evento mais cedo, ajudar os veteranos. Por sorte só preciso esperar cerca de 10 minutos para o carro do meu amigo estacionar no parapeito da calçada. Me enfio no banco do passageiro sem dar tempo algum para que ele botasse um pé para fora.
– Então a faxina... – ele começa enquanto afivelo o cinto.
– Damien pediu privacidade, sabe? Com a namorada – solto com naturalidade, sei disso. a voz é perfeitamente calma.
– Caio, eu... – meu amigo começa e preciso olhar para a janela, porque o tom vacilante de Lucas me faz pensar em coisas tristes, quase me fez vacilar com ele.
– Podemos chegar no evento mais cedo? – digo e Lucas entende, ele sabe bem sobre o quanto eu gostaria de falar qualquer coisa agora.
Ele é o melhor dos amigos que se pode ter.
O carro segue seu caminho e eu permaneço em silêncio por todo o trajeto até a faculdade.
O festival de cinema estudantil era como uma pequena feira organizada por nós para todos os alunos do campus. O evento servia para arrecadarmos fundos para nossos pequenos projetos cinematográficos e peças de teatro. Ao redor de todo nosso campus pequenas barracas ofereciam uma boa fotografia, jogos e comida barata.
Todo o aparato estava prestes a ser montado quando me aproximo de uma grande tenda branca. Uma menina com grandes óculos acompanhada por um cara gigantesco me olham com sorrisos gentis.
– Se não é o baixinho mais lindo dessa porra de lugar – o grande homem chamado Antônio grita, correndo até mim. Sua namorada, Amanda, revira os olhos com as mãos apoiadas na cintura.
Sabia que vir aqui era uma boa ideia, o rosto dos meus amigos trazia um refresco aos pensamentos.
– Caio, você veio – Amanda é quem diz, parece genuinamente feliz quando toca meu braço com carinho.
– Alguém precisa ser o brilho dessa feira – digo, dando de ombros. Lucas que me segue de perto solta uma gargalhada.
– A modéstia é parte do charme? – meu amigo me questiona, as sou interrompido por um tom divertido e conhecido.
– É sim – Pedro soa de longe, o vejo vindo a passos largos em nossa direção, os olhos sondando devagar. – Damien não veio com vocês? Ele me mandou uma mensagem dispensando a minha carona.
Não respondo a pergunta de imediato e graças a Deus alguém o faz por mim.
– Parece que não conhece seu amigo. – Amanda quem fala dessa vez. Nenhum deles está constrangido. Tudo é uma piada.
Damien era assim e todos sabiam.
– Bom, eu posso colocar vocês facilmente no lugar daquele galinha. Venham, nós estamos organizando o sorteio.
Ele acena para mim.
– Vão, eu vou ajudar no pavilhão da fotografia, prometi a minha amiga que o faria. – Pedro revira os olhos quando me puxa pela mão.
– Qual o prêmio? – pergunto, antes que ele pudesse falar sobre Lucas e a garota pela qual ele fazia tudo.
– Uma sessão privada as dez na nossa humilde sala de cinema. Todos os que consumirem tem direito a um cupom, quando mais consumir mais cupons e blá, blá, blá.
Assinto porque é uma ideia muito boa. Oferecer um cinema privado a um casal era um chamariz surreal dentro da faculdade. Mesmo que eu acreditasse piamente que eles pouco se foderiam para o filme.
– A gente precisa limpar aquilo – sugiro, porque nosso humilde cinema não se parecia muito com um ninho de amor. Mas eu era uma alma romântica e tinha ótimas ideias.
– E vamos – ele concorda, balançando a cabeça e sorrindo um pouco.
Pedro sempre ouvia minhas sugestões e isso me deixava feliz.
– Jogar um bom ar – digo, franzindo o nariz.
– Comprei o frasco – ele diz, como se estivéssemos checando uma lista.
– Escolher um filme bem piegas.
– Na verdade fizemos uma votação no instagram, temos um filme ganhador. – Bato nas coxas, interrompendo a caminhada, dando meu melhor para fazerem soar os tambores.
– Que é?
– Cinquenta tons de cinza.
Pedro dá de ombros e eu solto minha primeira gargalhada honesta do dia.
– Pensa em se inscrever? – ele me pergunta quando nos aproximamos da tenda branca que acredito ser a minha. Várias caixas de doces estavam espalhadas por uma bonita bancada de madeira.
– E eu perderia essa oportunidade? – exclamo, e depois aponto para a barraca já ao alcance de minhas mãos. – Então, é aqui eu vou atender?
– Bom, sim. Estou com medo do Damien furar. Ele era responsável pelo beijjinho. – Franzo o cenho e espero a explicação.
– É uma barraca de doces, ele e a Camila ficariam aqui. Acha que dá conta?
– Dou conta.
– Ótimo. – Ele para por um momento, me analisando de cima a baixo. – Você está bem?
– Por que não estaria? – pergunto e, na verdade, eu me sentia um pouco melhor.
– É, por quê? – ele parece pensativo por um segundo. – Vou te deixar organizando, volto logo para ajudar, só preciso confirmar com a Amanda na bilheteria os preços para te passar.
– Vá sem pressa. – Pedro me deixa sozinho e eu começo todo o processo de abrir as coisas. Tínhamos muito chocolate, frutas e docinhos. O nome brega da barraca era a cara de Pedro. Eu tinha certeza que ele escolheu pessoalmente.
O pensamento me faz sorrir.
Começo a ajustar as coisas de forma que tudo ficasse exposto. Eu tinha um megafone para atrair clientes e isso quase me anima, sou um ótimo garoto de negócios. Pego o aparelho na mão e dou uma boa olhada na potência.
Sim, isso iria servir.
– Vai usar isso? – o tom rouco e bem humorado me faz virar rapidamente e quem sorri atrás de mim é Damien. – Animado para vender?