LUKE
Era sábado de manhã e as enfermeiras haviam acabado de levar o meu café da manhã. Na bandeja no meu colo havia torradas, geléia, ovos mexidos e café.
Nada mal pra uma comida de hospital.
O Chris havia passado a noite comigo no hospital, como meu acompanhante, pra que minha mãe pudesse finalmente ter uma boa noite de sono pela primeira vez em mais de uma semana. Havia sido difícil convence-la, mas eu não estava mais me sentindo confortável com ela dormindo todas as noites mal acomodada no pequeno sofá ao lado da minha cama.
Além disso, o Chris conseguia ser bem convincente quando queria - simplesmente apareceu no hospital carregando uma mochila com uma muda de roupa e não aceitou ouvir um não como resposta dela.
Eu estava me sentindo bem e disposto, apesar de entediado. Já havia alguns dias que eu estava em observação e os médicos não me davam qualquer previsão de alta. Pelo contrário: a cada dia que se passava inventavam mais e mais exames de imagem e laboratoriais para serem feitos.
Eu não aguentava mais. Queria ir pra casa.
- Você vai comer isso aí? - o Chris questionou, apontando pra uma das minhas torradas -
Ele havia acabado de tomar um copo enorme da máquina de café e comido duas bananas e duas barras de proteína, mas, aparentemente, o estômago dele possuía um buraco.
- Pelo menos minha mãe não rouba minha comida quando fica aqui comigo. - brinquei, passando-lhe a torrada -
Nós dois rimos juntos e vimos minha mãe entrar no quarto logo em seguida.
- Do que vocês estão rindo? - ela indagou, curiosa -
- Oi, Liz. - o Chris a cumprimentou com um beijo na bochecha -
- Oi, mãe. - eu sorri, feliz por vê-la -
- Como passou a noite? - perguntou -
- Bem. - respondi com sinceridade - O Chris balbuciou o nome da Sarah algumas vezes durante o sono e roncou feito um trator. Mas dormi feito pedra depois de ter jogado um dos meus travesseiros nele.
Ambos sorriram quando o Dr. Carson, meu neuro-cirurgião, entrou no quarto.
- Bom dia. - ele falou num tom levemente animado, depois de higienizar as mãos -
- Bom dia, Doutor. - respondi me acomodando melhor na cama e colocando a bandeja do café da manhã em cima da mesinha de cabeceira - Me dê uma boa notícia e diga que posso sair desse hospital hoje, por favor. - pedi -
Ele sorriu.
- Sim, eu vou te dar alta hoje. - respondeu, arrancando uma pequena comemoração de nós três - Mas preciso falar com você sobre algo importante antes.
- O que pode ser mais importante do que a minha alta? - questionei - Finalmente vou pra casa! Quando vou poder tirar a tala do ombro? Já me sinto melhor.
O Dr. Carson soltou um sorriso tímido, meio constrangido, enquanto folheava alguns exames que eu havia feito dentro do meu prontuário médico.
- Vou pedir pro ortopedista avaliar seu ombro ainda hoje, antes da alta. - ele informou - Como você não está mais sentindo dor, acredito que ele vai liberar o uso da tala. Mas acredito que vai levar alguns meses pra você recuperar o movimento completo do ombro. Talvez sejam necessárias algumas sessões de fisioterapia.
Ignorei o comentário. Eu já havia deslocado o ombro outras duas vezes lutando, e em apenas algumas semanas, fazendo o tratamento certo, ele havia se recuperado. Não seria diferente daquela vez.
- Bem, aqui está. - ele falou, depois de finalmente achar o exame que estava procurando - Luke, você respondeu bem à cirurgia. Sua recuperação foi rápida e seu corpo respondeu bem aos estímulos.
Eu, minha mãe e o Chris escutávamos atentamente enquanto ele falava e se aproximava da minha cama.
- Antes de qualquer coisa, preciso que todos vocês entendam que toda cirurgia cerebral possui riscos, por vezes irreversíveis. - explicou, olhando pra minha mãe e pro Chris - Alguns pacientes pós cirúrgicos apresentam dificuldade motora, dificuldade na fala, perda de memória... e nada disso aconteceu com o Luke. Então, antes de tudo, preciso que todos tenham em mente que a cirurgia dele foi um sucesso e que ele está fora de perigo. Entendem isso?
Minha mãe assentiu, com um semblante preocupado, e eu me mantive calado, esperando que ele prosseguisse.
- Pois bem. - ele continuou - Essa aqui é uma tomografia realizada no dia seguinte à sua cirurgia, e essa aqui é uma tomografia realizada ontem. - ele colocou as duas imagens lado a lado sobre o meu colo -
Eu não entendia muito bem, a imagem era em preto e branco e não possuía muitas informações escritas, então não compreendia exatamente onde ele pretendia chegar com aquilo.
- Essa parte do seu cérebro é chamada de lobo-occipital. - ele explicou, apontando para uma massa branca na imagem - A nossa compreensão do mundo é baseada quase exclusivamente no sentido da visão. O lobo occipital processa os estímulos visuais de forma permanente, analisando distâncias, formas, cores, movimentos... tudo que chega através da retina, passa por esse centro de análise e processamento que, em seguida, envia as informações para o córtex cerebral.
- Essa é a área do cérebro responsável pela nossa visão então? - minha mãe indagou -
- Basicamente sim. - ele respondeu -
- E...? - eu finalmente questionei, pedindo que ele prosseguisse -
- Bem, essa foi a área mais afetada do seu cérebro com o impacto do acidente. - ele explicou - Se você notar bem, não houve qualquer alteração significativa nos seus exames realizados no dia do acidente e nos que foram realizados ontem. Isso significa que, mesmo com a cirurgia, não conseguimos reparar o dano que foi causado. Posso te tranquilizar que não é nada preocupante, pois seus exames demonstram que sua visão está intacta e que você não corre qualquer risco neste sentido, pois o dano foi mínimo. - ele me olhou - Mas preciso que todos vocês escutem com bastante atenção o que vou dizer agora. - pediu -
Eu, minha mãe e o Chris praticamente nem piscávamos os olhos.
- Sei que parece um tanto radical e amedrontador ouvir isso agora, mas, Luke, você não pode, nunca, jamais, sob hipótese alguma, lesionar essa área novamente. - ele informou -
- O que? - eu indaguei -
- É como se o seu acidente tivesse causado uma "ferida" no seu lobo-occipital, e por sorte, ela cicatrizou bem e não te trouxe nenhum dano. - explicou - Mas se você lesionar essa área novamente, você pode desencadear episódios de crises epilépticas e até perder a visão. Preciso que você seja extremamente cauteloso quanto a isso pro resto da sua vida.
- Mas isso significa que eu...
- Precisa parar de lutar. - o Chris complementou, sabendo o peso daquilo que havia acabado de dizer -
Meu mundo caiu. Eu não ouvia nem enxergava mais nada na minha frente. Não conseguia acreditar.
- Como assim, crises epilépticas? - minha mãe perguntou, aparentemente apavorada com a informação -
- Não há motivos para pânico. - ele a tranquilizou - Como falei, seu filho vai levar uma vida completamente normal. Ele está bem e permanecerá assim. Mas é preciso que ele tome alguns cuidados. Qualquer pancada na cabeça pode trazer consequências sérias para ele. Além das crises epilépticas, ele pode sofrer alguns fenômenos visuais, como aparecimento de "chuviscos", "flashes", "luzes", ou "escurecimento das vistas", "tremor nas pálpebras"...
Eu estava olhando para um ponto fixo na parede do hospital, ainda sem assimilar qualquer informação que estava saindo da boca do médico. O Chris olhava atentamente para mim, sem saber como reagir, e minha mãe parecia estar entrevistando o Dr. Carson com uma série de perguntas, mas eu não conseguia ouvir mais nada.
Um zumbido irradiava pelos meus tímpanos. Eu ouvia a informação, sabia o que estava acontecendo ao meu redor, mas estava alheio à tudo aquilo. Era como se nada que estivesse acontecendo no mundo pudesse me atingir mais. A informação de que eu nunca mais poderia lutar ficava gritando na minha cabeça como um eco que me machucava a cada repetição.
Eu não sabia como agir. Lutar fazia parte de quem eu era, era o que eu sabia fazer de melhor. A luta havia me tirado do fundo do poço que eu me encontrava quando meu pai faleceu e havia me mostrado que a vida deveria continuar, apesar de todas as minhas dores.
Era assim que eu me sentia quando estava em um ringue: vivo. Nada mais fazia meu sangue pulsar tão rapidamente pelas minhas veias. Lutar era o meu propósito. E durante anos, era a única coisa que me fazia levantar da cama de manhã.
Por muito tempo, eu só conseguia expressar o que eu sentia através da luta. Ódio, raiva, frustração... esses sentimentos teriam me devorado vivo se o Tony não tivesse me ensinado a controlar o que eu sentia na hora de lutar.
A luta havia me trazido alguns inimigos, mas havia me trazido muito mais amigos. Tony, Cobra, até o próprio Andrew... a luta havia nos aproximado. O Chris havia começado a lutar apenas para me fazer companhia quando meu pai morreu, como numa espécie de terapia conjunta, mas eu sabia que com o passar do tempo, ele também tinha desenvolvido paixão pelo esporte. Porque era isso que a luta fazia por nós: nos unia.
Lutar pra mim não se tratava apenas de preparação fisica, saber atacar, defender, esquivar ou movimentar. Era muito mais que isso e eu compreendia a sua essência.
Um par de luvas e um saco de pancadas sempre seriam o melhor remédio pra mim.
Mas agora eu não tinha mais nada.
Absolutamente tudo que eu amava havia sido tirado de mim.
- Sei que parece que estou te dando uma notícia ruim, Luke. - ele tentou me tranquilizar - Mas na verdade, você é um guerreiro. Sair desse hospital sem qualquer sequela desse acidente faz de você um vencedor.
- Como pode não ser uma notícia ruim? - eu respondi, com raiva - Você entra aqui, fala que eu nunca mais vou poder subir num ringue novamente e acha que devo me sentir um vencedor?
Senti as lágrimas descerem dos meus olhos e alcançarem minha boca. O gosto salgado já era um bom e velho conhecido meu, mas ultimamente eu o estava sentindo mais do que gostaria.
- Luke, eu... - minha mãe falou, tentando me abraçar -
Me desvencilhei do abraço com o braço que não estava imobilizado e a empurrei pra longe de mim, levando minhas mãos ao rosto
- Eu vou dar um momento pra vocês. - o Dr. Carson falou, saindo do quarto -
- Quem ele pensa que é pra entrar aqui e me dizer essas coisas? - gritei, revoltado - Quem ele acha que é pra me dizer que eu não posso mais lutar?
- Vai ficar tudo bem, meu irmão. - o Chris falou, se aproximando de mim - Lidaremos com o resto depois. Seja lá o que virá pela frente, enfrentaremos isso juntos, ok? Como sempre foi. Mas agora você está bem, e isso é tudo o que importa.
- Não, não é! - eu o empurrei pra longe de mim também - Lutar faz parte de quem eu sou! E eu não tenho mais nada, cara! Eu não tenho mais nada! - falei, entre lágrimas -
- Filho... - minha mãe tentou se aproximar de mim novamente, mas o Chris lançou um olhar pra ela que dizia que ele saberia lidar melhor com aquela situação, o que fez ela se afastar -
- Eu não posso... - eu solucei - Eu não vou deixar de lutar. Eu não vou fazer isso! Você me entende, Christopher? Eu não posso! Você me entende? - questionei choroso, implorando pela sua compreensão -
Mas ele não entendia. E talvez nunca fosse entender.
- Chris, eu não tenho mais nada... eu não posso deixar de lutar... eu não posso... - falei entre soluços - Você entende? Preciso que você diga que me entende!
Em vez de me responder, meu amigo se sentou a minha frente na minha cama, puxou minha cabeça e a colocou sobre um de seus ombros.
Ele não falou nada, mas, ainda assim, fez tudo que precisava ser feito. Me abraçou com força e esperou pacientemente que eu parasse de chorar.