"A família Jiang foi embora para outra cidade três anos depois de vocês. A última vez que vi algum deles foi há alguns meses. A senhora Jiang YanLi, que trabalha no hospital de Yunmeng".
Lan WangJi, sentado no chão de seu quarto, tenta se concentrar no que está fazendo: organizando seus documentos por ordem cronológica no armário. Ele respira fundo, tenta todas as técnicas que conhece de concentração, mas as palavras de seu tio não saem de sua cabeça de jeito nenhum.
Dois dias haviam se passado desde que os irmãos Lan voltaram para Gusu e WangJi já não aguentava mais o aperto em seu peito. No Canadá, já era complicado passar um dia inteiro sem deixar que sua mente o lembrasse constantemente da felicidade que um dia sentiu. Em Gusu, era ainda mais difícil, pois ele está tão perto de tudo, mas tão longe do que realmente importa.
Bufando de repente, Lan WangJi recolhe o restante dos documentos e os coloca em cima do armário, deixando para organizá-los em outro momento. Em algum momento em que ele não estivesse tão distraído. E nostálgico. E triste.
Sem pensar muito – uma ação tão rara quando se trata de Lan WangJi –, o rapaz se levanta de onde está, sai de seu quarto e caminha até o escritório de seu tio. Batendo três vezes à porta, Lan WangJi ouve a permissão de Lan QiRen para entrar. Após adentrar o compartimento, o rapaz cumprimenta o tio como sempre faz.
— WangJi, está tudo bem? — Lan QiRen pergunta ao sobrinho, que apenas assente levemente.
— Preciso usar um dos carros. Por favor. — WangJi pede diretamente.
O tio observa o sobrinho por algum tempo. Para olhares não tão familiares, a postura e comportamento do rapaz pareceriam perfeitos, mas para Lan QiRen havia algo errado. É quase imperceptível, mas o homem sabe que Lan WangJi está ansioso por algo. Ele também sabe que apenas algo – ou melhor, alguém – conseguiria deixar WangJi assim.
Do outro lado do cômodo, WangJi se pergunta se o tio perceberia a sua confusão mental nesse momento.
Depois de franzir as sobrancelhas por vários minutos, Lan QiRen responde.
— À vontade. Já disse que tudo aqui também é seu e do seu irmão. — O homem responde de forma ríspida, como se aquilo não fosse o que queria dizer, e volta a remexer em alguns papéis em cima de sua mesa.
Lan WangJi agradece e não se demora mais naquele escritório. Ele logo sai pelos corredores da mansão e vai até a enorme garagem com um leque de opções de carros. O rapaz pega a chave do carro mais próximo de si – um Aurus Senat – com um dos empregados e espera, ansiosamente, enquanto este abre o portão para si.
Ao sair dirigindo por Gusu, Lan WangJi se pergunta se aquilo é o correto a se fazer. Mas logo seus receios são apagados quando o sorriso de uma pessoa aparece em sua mente.
—
Lan WangJi perde a noção do tempo que passa dentro daquele carro enquanto dirige de Gusu até Yunmeng. A música clássica chinesa ecoando pelo automóvel o distrai um pouco de sua ansiedade. Ao longo da canção, WangJi consegue ouvir claramente os sons de instrumentos musicais chineses como a guqin, a xiao e a dizi, fazendo seu coração se acalmar.
Já em Yunmeng, WangJi precisa se esforçar bastante para encontrar o hospital do qual seu tio havia falado. Ele não passeava por aquela região há mais de treze anos, resultando em sua demora para chegar ao seu destino nesse momento.
Mas ele encontra o hospital. O local onde Jiang YanLi trabalha. Onde a irmã de Wei WuXian trabalha.
Lan WangJi estaciona em frente ao estabelecimento e respira fundo antes de sair do carro. Ele caminha pelo hospital observando a estrutura enorme dele e, por um momento, se pergunta o quão inconveniente seria chegando ao trabalho de Jiang YanLi de repente. Mas WangJi já havia ido até ali, seria um absurdo desistir agora. E a recompensa, ele espera, valeria a pena.
— Bom dia, gostaria de falar com Jiang YanLi, por favor. — Lan WangJi fala para um moça na recepção do lugar e percebe que, na verdade, não faz a menor ideia do que está fazendo. Ele nem ao menos sabe qual é a profissão de Jiang YanLi, muito menos o que falaria para ela caso chegasse a ser recebido. Seu ato estava sendo completamente baseado em um impulso.
E, mais uma vez, WangJi lembra de uma época deixada para trás há muito tempo. Uma época em que Lan WangJi se deixava ser puxado por Wei WuXian e corria por entre o jardim de seu tio sem pensar na bronca que poderia levar depois, sem pensar na impulsividade de seus atos.
— Bom dia! Irei verificar se ela está disponível. — A moça responde tirando-o de seus devaneios e Lan WangJi assente, esperando enquanto ela pega um telefone e fala um código.
— Doutora Jiang, há um rapaz na recepção dizendo que quer falar com a senhora. — A mulher diz.
Lan WangJi repete a palavra "Doutora" em sua própria mente e se sente feliz por saber que YanLi havia seguido o caminho da Medicina, pois ela sempre havia tido um talento especial para cuidar das pessoas com quem se importava. WangJi lembra claramente do dia em que Wei WuXian acabou caindo de uma árvore. Quem o salvou foi a irmã mais velha, que logo fez curativos na perna do garoto como se tivesse nascido com aquele dom de cuidar.
— Senhor? — A voz da recepcionista ecoa na cabeça de WangJi e ele a olha, tendo a impressão de que ela já estava chamando-o há algum tempo. Ele havia se perdido em devaneios e lembranças mais uma vez.
— Seu nome? — A recepcionista pergunta ao ver que tem a atenção do rapaz. WangJi engole em seco.
— Lan WangJi. — Ele responde. Agora não havia mais volta.
A recepcionista repassa o nome para a doutora e franze as sobrancelhas ao ouvir algo que Jiang YanLi fala através do telefone, mas assente e responde com um "OK". Lan WangJi permanece em frente ao balcão esperando por alguma orientação.
— Pode vir comigo, senhor. A Doutura Jiang irá recebê-lo imediatamente. — A recepcionista diz intrigada, como se aquela não fosse uma ocorrência muito comum por ali.
Ela se levanta do balcão e olha para o rapaz dos pés à cabeça. WangJi se sente desnudo, mas acompanha a mulher para o elevador próximo do balcão.
— A sala da Doutora Jiang fica no décimo andar. A secretária dela o receberá. — A recepcionista diz quando as portas do elevador se abrem e ela faz um gesto para que ele entre. WangJi agradece e o adentra.
Sozinho no elevador durante alguns minutos, Lan WangJi tem tempo para pensar no que falar para a mulher com quem vai se encontrar, mas nada que surge em sua mente parece ser coerente o suficiente. Talvez ele saia dali com Jiang YanLi o julgando como um lunático. Mas Lan WangJi lembra da sua infância e da personalidade afetuosa e leve que Jiang YanLi sempre teve; isso lhe dá um pouco de esperança de ser compreendido pela mulher. Ele também espera que ela o ajude com o que veio pedir.
O elevador finalmente para no décimo andar e Lan WangJi sai do cubículo, sendo imediatamente recebido por outra moça que aparenta estar nos seus vinte e poucos anos também. Ela sorri de orelha à orelha e o cumprimenta como se conhecesse WangJi há muito tempo. O rapaz se acanha, mas responde.
— O senhor deve ser Lan WangJi. — Ela diz sem parar de sorrir em nenhum momento. O rapaz assente.
— Vamos, a doutora está esperando pelo senhor. Ela parece muito contente pela sua visita. — A secretária fala ao indicar a porta do consultório que contém uma placa com os dizeres "Dra. Jiang YanLi" em letras cursivas.
A moça bate à porta da doutora e avisa sobre a chegada do rapaz, logo depois voltando para o seu balcão. Lan WangJi segura a maçaneta e abre a porta cuidadosamente.
E Jiang YanLi está ali, sentada em seu consultório parecendo tão plena e leve, do mesmo jeito que Lan WangJi se lembra dela.
Jiang YanLi sorri de um jeito tão aberto e carinhoso que aquece o coração de WangJi. Seus cabelos longos, escuros e amarrados em um penteado bem feito são jogados para trás quando ela se levanta, arrumando levemente o jaleco em seu corpo antes de se aproximar do rapaz.
— Lan WangJi, eu sabia que um dia você voltaria. E você cresceu tanto! — É a primeira coisa que a mulher diz quando fica em frente ao rapaz mais alto do que ela.
Lan WangJi vê que os traços de idade em Jiang YanLi são praticamente imperceptíveis. Ela ainda tem o olhar juvenil e carinhoso do qual WangJi nunca esqueceria, mas agora sua expressão é de uma mulher totalmente dona de si.
— Senhora YanLi. — WangJi a cumprimenta do seu jeito sempre solene, fazendo a mulher rir.
— Ora, deixe de formalidade, sente-se. — YanLi aponta para a cadeira dos pacientes e vai até o outro lado da mesa, sentando-se em sua própria. Ela serve um pouco do chá sob a mesa para si mesma e oferece um copo para WangJi, que aceita.
— Você voltou quando? — Jiang YanLi pergunta após entregar o pequeno copo para Lan WangJi. Ele agradece e dá um gole na bebida antes de respondê-la.
— Há dois dias. Eu e meu irmão voltamos para Gusu. — Ele explica.
WangJi continua dando pequenos goles em seu chá, sem saber exatamente o que falar ou como continuar a conversa, até perceber o olhar curioso de YanLi sobre si. Ele a retribui com um olhar confuso. Ela sorri.
— Eu tenho uma leve suspeita do que você veio fazer aqui, Lan WangJi. — A doutura em sua frente diz enquanto mexe no seu chá com uma colher.
WangJi cerra seu maxilar. Seria possível que ela soubesse de suas intenções esse tempo todo?
— Eu... — Lan WangJi começa a falar, mas nada mais sai de sua boca, fazendo YanLi gargalhar levemente.
— Não há razão para se envergonhar disso, Lan WangJi. — Jiang YanLi diz e seu olhar consegue ficar ainda mais compreensivo do que o normal, fazendo o rapaz se perguntar como isso é possível.
— Eu sei que o que realmente importa para você agora é... — Ela começa a falar.
— Falar com Wei WuXian. — Lan WangJi completa a frase automaticamente.
O sorriso de Jiang YanLi aumenta tanto que seus olhos se fecham. Lan WangJi não acredita em seus próprios atos e nas suas próprias palavras. Ele não tinha intenção de falar aquele nome – que sempre está em sua mente – em voz alta.
Mas a face alegre de Jiang YanLi se desfaz lentamente após algo passar pela sua mente de repente.
— É claro, isso se você for ficar... — Jiang YanLi diz de uma forma protetora que WangJi nunca havia visto direcionada a si, apenas para outras pessoas que tentavam magoar seus irmãos quando eram mais novos.
E isso faz o peito de Lan WangJi se apertar em dor. Ele não quer pensar sobre o fato de que YanLi provavelmente tem medo de que ele vá embora de novo. WangJi não quer pensar sobre o fato de ter sido uma causa de mágoa para Wei WuXian.
— Eu voltei para ficar. — É tudo que Lan WangJi consegue dizer, mas é o suficiente para trazer o sorriso de volta ao rosto de YanLi.
Ela pega um bloco de anotações e uma caneta, em seguida começa a anotar algo. Assim que termina, YanLi arranca o papel do bloco e o entrega para Lan WangJi.
— O endereço e o número de telefone do meu irmão. — Ela explica, ainda estendendo a mão com o papel.
O coração de Lan WangJi ameaça sair de seu peito a qualquer momento. Ele olha para o pequeno papel nas mãos de Jiang YanLi como se estivesse com medo de fazer qualquer movimento para pegá-lo e Jiang YanLi parece perceber isso.
— Não há motivos para ter medo, Lan WangJi. Ele ainda é o Wei WuXian. — A mulher fala com um tom suave.
Lan WangJi suspira forte. Wei WuXian.
Depois de alguns segundos, ele finalmente pega o papel e agradece a Jiang YanLi. WangJi gostaria de conseguir explicar para a mulher o quão grato ele se sente pela sua ajuda, mas um "Obrigado" é tudo que consegue sair de sua boca.
Jiang YanLi caminha até o elevador com Lan WangJi. Eles se despedem trocando olhares que apenas os dois percebem e entendem.
"Não irei decepcioná-lo".
"Eu confio em você para cuidar dele".
—
Obrigada pela leitura! Até o próximo capítulo! 💜