Os dois entram num cômodo praticamente vazio, se não fossem pelas velas na parede e por uma mesa colocada ao centro, com cadeiras ao redor. Tudo parece extremamente velho e rudimentar. Não há janelas nem ventilação no ambiente, e o Sacerdote se pergunta como seria possível que não morressem sufocados lá dentro.
Cerca de quinze figuras, totalmente vestidas de preto e usando as mesmas máscaras, se sentam ao redor da mesa, sem render atenção aos recém-chegados. Duas cadeiras estão vazias. Dantálion se senta em uma delas, sem dar nenhum sinal ao Sacerdote, que se ajeita nervosamente na outra cadeira.
- Podemos começar as presenças. – alguém diz. É impossível determinar de que direção veio a voz fantasmagórica.
Um dos membros se levanta:
- Alastor.
Ao proferir a palavra, volta a sentar.
Outro se levanta:
- Malphas.
- Kali. – diz outro, após o anterior ter se sentado.
-Buer.
E, assim, cada um deles se coloca de pé, dizendo um nome antes de retomarem seus lugares.
- Dantálion.
O Sacerdote tem um sobressalto quando o garoto ao seu lado levanta. Por um segundo, havia se esquecido totalmente dele.
Era estranho ouvi-lo se apresentando daquela forma. Dantálion havia se tornado um nome familiar, importante, e, ao ouvir o nome sendo dito dessa maneira fria, como se fosse apenas uma palavra vazia, um invólucro de algo indefinido, um sentimento de tristeza o toma. E, tão súbito quanto veio, passa.
Todos já se apresentaram, menos ele.
Tentando disfarçar a ansiedade, ele se ergue:
- Moloque.
Todos se viram em sua direção.
Seu rosto arde por debaixo da máscara, como se de repente estivesse exposto e nu. Como se aqueles olhares secretos e cheios de ódio pudessem vê-lo e ver que ele era o seu inimigo. O objeto de sua revolta. O alvo de seu ataque. Logo ali, a meio metro de seu alcance. Suas mãos suam frio.
Então as sombras negras desviam o olhar novamente para o centro da mesa, o último segundo já apagado de suas memórias.
- Dantálion, - alguém diz – faz tempo que você não vem às reuniões.
- Eu estava tratando de alguns assuntos.
- Que assuntos são mais importantes que a Ordem?
- Assuntos particulares. – responde autoritariamente, calando as indagações de quem quer que fosse.
O Sacerdote se sente feliz por tê-lo ao seu lado. Se ele se sentasse em outro lugar, talvez esquecesse qual das figuras idênticas era o seu "amigo".
- Ronove, - outro diz – temos um novo integrante. Não seria bom retomarmos a aula inicial?
Há algumas vaias de protesto, todas soando medonhas através do mecanismo de alteração de voz. O Sacerdote aperta as mãos contra o assento de sua cadeira.
Uma das figuras se levanta e caminha para a parede central da sala, pedindo silêncio com as mãos. Provavelmente é ele quem diz:
- Fiquem calmos, pessoal. Nunca é demais recordar.
- Temos assuntos mais urgentes para resolver! – alguém grita, reiniciando o coro de vaias.
- Chega! – explode Dantálion, batendo as mãos sobre a mesa e se colocando de pé – Nós temos uma norma, e vocês sabem muito bem. Toda vez que houver um membro novo, devemos repassar a aula inicial.
Por detrás da máscara, o Sacerdote sorri.
Aparentemente o garoto é o mais enérgico de todos e tem alguma autoridade. Ele estará seguro enquanto Dantálion estiver ao seu lado.
A pessoa que estava falando anteriormente retoma:
- Seja bem-vindo à Ordem dos Surdos, Moloque. – ele diz sem olhar na direção de ninguém em específico - Nossa Ordem existe há quase um século, e seu objetivo é destruir o sistema sacerdotal de governo. Antes de falar sobre nossas origens, porém, é preciso que falemos um pouco sobre o que existia antes do sistema atual.
O sujeito olha para o chão dramaticamente.
- Antes de esta cidade existir, e antes de a ordem dos Sacerdotes ser estabelecida como forma de governo, o mundo era um lugar muito diferente. Havia países e nações, havia outras línguas, havia tecnologia e energia elétrica. Havia veículos que atravessavam distâncias inimagináveis através do ar. Havia, inclusive, veículos capazes de levar as pessoas até a Lua.
O salão mal iluminado ajuda a despertar a imaginação de todos, e o Sacerdote se estica em sua cadeira, desejando ardentemente ouvir mais sobre as histórias do mundo antigo. A fala do outro, porém, muda de tom:
- Mas, como sempre, a humanidade era violenta e amava guerras. Houve uma última guerra, a mais terrível de todas, que encerrou o período de prosperidade das nações mais ricas e destruiu praticamente metade do planeta, tirando do mapa grande parte dos países, levando ecossistemas inteiros à extinção e, claro, iniciando um período de fome, caos e miséria para os infelizes que não tinham dinheiro suficiente para reconstruírem suas vidas.
"Os poucos sobreviventes estavam desanimados a respeito do futuro. Um governo flexível, como o que existia no mundo todo antes da guerra, havia levado ao fracasso. Quando o martelo do poder foi colocado sobre as mãos da maioria, a maioria não soube o que fazer com ele, além de atirá-lo na cabeça da minoria. As próprias maiorias não eram tão unânimes quanto pensavam, e logo estavam divididas e se combatendo mutuamente. A liberdade de escolha os levou às piores guerras imagináveis, e não havia governo ou população capaz de conciliar uma quantidade tão grande de inimigos poderosos.
Então os sobreviventes daquele período sombrio resolveram que o futuro teria que ser diferente se a sociedade humana quisesse continuar a existir. Eles tiveram a brilhante ideia de isolar as pessoas em pequenas ilhas sociais, afastadas umas das outras, sem contato com o resto do mundo. Foi assim que criaram as cidades, e foi assim que criaram esta cidade, cada uma delas com sua própria forma de governo e suas próprias crenças. Sem contato com as diferenças, a paz estaria garantida.
Os fundadores de nossa cidade resolveram abolir toda tecnologia e apagar para sempre o passado. Nossos ancestrais acreditavam que um regime que garantisse liberdade ao povo só traria mais conflitos e violência, como havia ocorrido no resto do mundo. Eles decidiram que a única forma de manter uma taxa baixa de crimes e uma sociedade funcional seria através de um regime rígido, baseado em leis fortes e punições severas. Mas eles sabiam que, para que todos aceitassem tal regime, precisavam mais do que simplesmente leis: eles precisavam de uma força maior. Foi assim que construíram um templo, e elegeram a casta dos Sacerdotes para representarem um poder divino, que poderia não só vigiar suas ações, mas também seus pensamentos. Dessa forma, criaram o governo perfeito, com a figura do Sacerdote como portador da verdade e do poder absolutos."
O Sacerdote sente seu sangue gelar, e paralisa, com medo de que o mínimo movimento o denuncie. Dantálion não esboça nenhuma reação.
- Por fim, foram estabelecidas as leis, dentre as quais os Crimes Imperdoáveis. Não bastassem as leis abusivas e violentas, eles ainda foram capazes de criar os cargos dos Auxiliadores, funções que eles próprios adotaram para concretizarem seus desejos.
O ambiente se torna tenso, carregado com uma onda de ódio que emana de cada um dos Surdos, exceto do Sacerdote, que permanece petrificado em sua cadeira.
Após uma pausa, o orador muda de tom novamente:
- Há mais ou menos um século, alguns de nossos ancestrais começaram a se rebelar contra esse sistema, e, após muita luta e muito sangue, a Ordem dos Surdos foi formada por aqueles que se negavam a ouvir uma voz autoritária.
"Duas vezes tivemos nosso auge, com escolas que traziam boa parte da população para nosso lado. Fomos traídos, porém, e os massacres mais terríveis da história desta cidade ocorreram. Por duas vezes, a Ordem foi praticamente destruída, sobrevivendo apenas graças aos esforços de nossos pais e de alguns de nós." ele olha diretamente para Dantálion quando termina a última frase "No momento, poucos sabem de nossa existência, e estamos usando isso a nosso favor para não corrermos o risco de uma nova Limpeza."
Ele se volta então para Moloque.
- O que queremos agora é planejar uma forma mais eficiente de agir, sem levantar tantas suspeitas, para derrubar o poder do Palácio e acabar de uma vez com todos os Auxiliadores e o Sacerdote.
A tensão nos músculos de Dantálion se torna visível. Por sorte, no ambiente escuro, seria difícil alguém mais notar.