Depois de um café da manhã frio, retomaram sua jornada, descendo a montanha. Passaram a manhã inteira cavalgando e, ao final da tarde, enfrentaram uma forte nevasca que acabou os atrasando. Tiveram que montar o acampamento numa gruta que encontraram e aguardar. Nova e Héricles tentaram improvisar um abrigo para os cavalos, pois certamente não aguentariam todo aquele frio. Jiae os ajudou, tinha mais experiência com os animais.
- Você é bem quieto, hein, rapaz? – brincou Nova, tentando fazer o garoto se enturmar.
- Acho que me entendo mais com os animais. – respondeu Jiae, um tanto tímido.
- Si nos contou que você tem a habilidade incrível de se comunicar com eles. – comentou Héricles. – É verdade?
- Mais ou menos – respondeu Jiae. – Não é que eu fale com eles ou coisa assim... Mas parece que eles entendem mais rápido os meus comandos.
- E você parece entendê-los melhor também. – comentou Nova, achando interessante – Eu o vi com o seu Lobo. Como ele se chama?
- Kino. – respondeu Jiae e o Lobo ergueu a cabeça ao ouvir seu nome. – Ele cresceu comigo, por isso nos entendemos bem. Mas seu tigre também parece entendê-lo – disse Jiae para Héricles. – Como ele se chama?
- Shiloh. – Héricles o citou, mas o tigre não deu a menor bola e continuou deitado próximo deles. – Mas ele só costuma entender quando quer, não é mesmo grandão? – Shiloh bocejou, ignorando-o completamente. – Como você pode notar... – acrescentou Héricles e Jiae achou graça.
- Shiloh não conta como animal, Jiae. – disse Nova. – Ele é um tanto... peculiar.
- E o que você e Kino estão achando da viagem até agora? – perguntou Héricles. – Imagino que não tenha sido tão divertida assim, desculpe por isso.
- Na verdade, estou gostando bastante – Jiae parecia animado, mas acanhado ainda. – Eu nunca tinha saído do Bosque, então... é tudo muito novo. Minha mãe... – ficou em silêncio por alguns minutos.
- Perdeu sua mãe na primeira batalha, não foi? – questionou Nova.
- Sim.
- Sente falta dela ainda não é?
- Muita. Minha mãe costumava me contar histórias sobre as terras de Alátria. Ela era uma das grandes guerreiras dessas terras. Provavelmente a conhecia, Príncipe Sol.
- Me chame de Nova, por favor, é o nome pelo qual sou conhecido agora. E nada de "majestade" ou "alteza", ou qualquer outra frescura dessas, por favor.
- Está bem. – Jiae riu. – Você deve tê-la conhecido... Nova.
- Provavelmente a conhecia, mas minhas memórias estão todas bloqueadas. Não sei se vou conseguir recuperá-las tão facilmente.
- Que acha de contar um pouco sobre ela? – sugeriu Héricles.
- Ela era o braço direito da Princesa Violeta. Elas viviam juntas pelo Bosque. Era uma pessoa forte e inteligente, era ela quem comandava a Matilha de Lobos antes. Dunat tinha muita confiança nela também. E ela era alegre. Era a pessoa mais alegre que eu conheci, eu acho. Ela podia fazer qualquer um sorrir, mesmo sem querer.
- Ela me parece uma pessoa incrível. – Nova sorriu e o garoto retribuiu o sorriso.
- Quando ela foi escolhida para a ir à Criação ela ficou muito feliz, e então, Violeta lhe entregou uma das herdeiras. O Lobo. Lembro-me de ela chegar em casa e me contar que tinha recebido uma das maiores honras, seria um dos Generais da grande Legião Branca. Ela me contou como se fosse uma grande aventura, a maior delas. Mas ela não voltou para me contar como foi.
- Você era muito novo? – questionou Héricles comovido.
- Sim. Desde então Cedro tem cuidado de mim, mas... enfim, não me sinto parte da família dos elfos. Eles são muito diferentes de mim.
- Bem, então está no lugar certo. – disse Beto se aproximando e ouvindo o final da conversa. – Somos um bando de gente estranha, que decidiu andar junto. Acho que devemos ser o grupo mais estranho de toda Alátria.
- No mínimo. – concordou Héricles, com um sorriso zombeteiro.
- Espero que se sinta em casa conosco, Jiae. – completou Nova com a mão em seu ombro. – Porque vai ter que nos aguentar por muito tempo.
- Obrigado – disse o garoto, achando graça.
- E se precisar de qualquer coisa, não hesite em nos avisar, ok? – acrescentou Héricles. – Não fique tímido.
- No fundo somos pessoas legais. – completou Beto. – A nevasca está fortíssima lá fora, melhor dormirmos mais para o fundo da gruta. Eu e Ambaris já checamos, parece tudo ok.
- Ótimo. – concordou Nova. – Hora de descansarmos um pouco.
Eles estenderam os sacos de dormir e dormiram todos juntos, pois assim Nova, Carol e Ambaris poderiam manter todos aquecidos. Héricles estava sem sono e resolveu assumir o primeiro turno da guarda com Nova. Ana também não conseguia dormir e ficou sentada com eles no centro do acampamento. Si estava deitada no colo do marido, aquecendo-se.
- Eu também revivi aquele dia – comentou Ana. Ainda estava revoltada e assustada com o que tinha descoberto. – Mas minha experiência não foi boa como a de vocês.
- Começo a me preocupar com o que vou descobrir sobre o meu passado – suspirou Héricles.
- Ao que tudo indica você é o único que não deve se preocupar – comentou Si num bocejo.
- Si tem razão – concordou Nova. – Todas as Musas parecem estar ao seu lado.
- Bom, mas essa presença... esse monstro dentro de mim... deve haver uma razão para estar aí. Devo ter feito algo errado para receber essa punição.
- Mas Ana, fiquei curiosa, o que foi que te assustou tanto? – perguntou Si, observando-a.
- O que me assustou... – Ana riu, irônica e seus olhos se encheram de lágrimas. Ela ficou séria novamente, a revolta estampada em seu rosto. – Elas sabiam. Todas elas sabiam que íamos falhar. Elas nos enviaram para a morte. Eu... eu estava assustada e com medo aquele dia, e mesmo assim ela me mandou para a Criação.
- Ei, vem cá – Héricles a puxou para perto de si e a abraçou. – Acalme-se.
- Elas sabiam? – repetiu Nova, incrédulo.
- Todas elas sabiam, Nova! – confirmou Ana.
- Acalme-se Ana – pediu Si segurando sua mão – tenho certeza que devia haver um bom motivo para elas agirem assim.
- Si tem razão – concordou Héricles, acalmando-a. – Não fique assim.
- Não pode ser verdade, Tulek não ia me mandar para a morte. – Nova não queria acreditar e Si sentiu como ele ficou atordoado e revoltado com aquela informação.
- Meu amor, não podemos tirar nenhuma conclusão precipitada – pediu Si, segurando o rosto dele com delicadeza. – Acalme-se. Precisamos descobrir todos os mistérios ao redor dessa história antes de tirar qualquer conclusão.
- Me desculpem – pediu Ana enxugando uma lágrima. – Não queria criar essa situação, é só que...
- Você não está sozinha, Ana – disse Héricles, olhando fundo em seus olhos. – Estamos todos no mesmo barco. Precisamos estar unidos, se houver algum problema não hesite em nos contar.
- Ele está certo – concordou Nova, já mais calmo. – Temos que enfrentar isso juntos.
- Obrigada – agradeceu Ana. – E obrigada pelo abraço, Héricles! – sorriu sem jeito – eu estava mesmo precisando.
- E devo dizer que você se deu muito bem, Ana! – brincou Si – Segundo a Carol, e eu mesma posso atestar, ele tem o melhor abraço do mundo. Com todo respeito, Nova, sem querer desmerecer o seu. – completou, piscando para o marido.
- Vou ficar com ciúmes assim! – disse Nova, fazendo uma expressão enciumada.
- E eu vou ficar sem graça! – resmungou Héricles um tanto tímido.
- Não fique – respondeu Ana com um sorriso. – Devo concordar com a Carol e com a Si.
- Se continuarem com essa propaganda eu vou querer um abraço também. – zombou Nova.
- Ah! – provocou Héricles e abriu os braços. – Vem cá que eu te abraço, faço até um cafuné nesses cabelos sedosos!
- Cala a boca, Héricles! – Nova riu e o afastou.
- Comportem-se rapazes! – ralhou Si, mas sem muita seriedade.
- Fico feliz de ter encontrado vocês – concluiu Ana. – Obrigada.
- Conte conosco, Ana – disse Nova. – É como dissemos ao Jiae, somos estranhos, somos meio bobos, mas no fundo somos boas pessoas.
- É – concordou ela – vocês são bem estranhos mesmo, mas vou me acostumar.
- Bom, agora que estamos mais tranquilos eu vou descansar um pouco – disse Si num bocejo. – Boa noite Ana, Héricles. Boa noite, meu amor. – deu um beijo em Nova.
- Boa noite! – respondeu ele.
- Acho que vou descansar um pouco também – comentou Ana. – Vocês podiam aproveitar para descansar rapazes. Com essa nevasca posso garantir que não haverá perigo para nós. Os gigantes de gelo também devem estar patrulhando a noite.
- Olha, acho que vou aceitar sua sugestão – disse Héricles se ajeitando ao lado de Carol. – Shiloh está aqui também, se houver algo ele vai nos acordar. Vou aproveitar a deixa para ficar com a minha pequena. – sorriu e abraçou Carol – Boa noite para vocês.
- Bom, então também vou descansar – concordou Nova. – Boa noite.
- Boa noite rapazes – disse Ana, já mais leve.
A noite foi longa, mas menos fria dessa vez. Zira acordou mais cedo, na verdade, mal tinha dormido. Já começava a ter olheiras e aparentar o abatimento, mas não se importava. Estava mesmo abatida e triste, não lhe parecia tão importante fingir alegria. Ela deixou o acampamento agasalhada e foi até a entrada da gruta para ver se a nevasca tinha passado. Uma grossa camada de neve tinha se formado por todo o caminho e no alto das montanhas, mas o dia estava lindo.
O céu estava azul e sem nuvens, não havia sinal de mau tempo. Ela sentiu a brisa e alçou voo. Fazia tempo que ela não voava apenas por voar. Gostava da sensação. Deu uma boa volta no vale abaixo e depois subiu muito alto para desanuviar sua mente. Não pensou em nada. Apenas bateu asas e apreciou o vento enquanto deixava sua tristeza esvair-se. Não funcionou muito, mas ela teve ao menos algum alívio. Quando voltou ao acampamento ele já estava acordado. Era exatamente tudo o que ela queria evitar: ficarem a sós. Não seria mal-educada com ele. Seria infantil de sua parte.
- Bom dia. – disse ela sem sequer desviar os olhos para ele. Foi direto avaliar os cavalos, para ver se tinham aguentado a noite.
- Bom dia – respondeu Ambaris. – A nevasca parou?
- Sim.
Ele a observou acariciar os animais e checar se estavam bem.
- Estava voando? – perguntou ele, tentando manter uma conversa com ela. Não havia motivos para não se falarem, já eram adultos afinal.
- Sim.
- Está monossilábica hoje? – provocou ele.
- Sim. – o encarou, deixando transparecer seu cansaço e melancolia.
- Desculpe... – não aguentava ver a tristeza naqueles grandes olhos azuis. Acabava com ele.
- Está desculpado. – desviou os olhos novamente para o cavalo à sua frente.
- Foi você quem quis assim, Zira. – disse ele se aproximando enquanto ela escovava o animal.
- Não! – respondeu ela com raiva. – Foi você quem quis.
- Você é inacreditável mesmo! – balançou a cabeça, irritado.
- E você não sabe o que quer – ela o encarou. – Se quer mesmo me esquecer, então por que me provoca? Por que não me deixa em paz e volta para sua cama com ela?
- Não faz a menor diferença para você, não é?
- Não vou brigar com você de novo, Ambaris. – entregou a escova nas mãos dele e deixou a gruta novamente.
- Não vai me deixar falando! – foi atrás dela e a segurou pelo braço assim que saíram da gruta antes que ela pudesse abrir as asas e voar.
- Me solte.
- Não vou soltar! – berrou ele mais alto.
- Eu vi quando a levou para o seu quarto no palácio. Está fazendo tudo de novo! Eu odeio você! – disse ela com raiva estreitando os olhos e por um momento um brilho rosado apareceu em seu olhar, mas Ambaris estava alterado demais para notar aquele detalhe.
- Não aconteceu nada ontem! – rebateu ele. – E mesmo que tivesse acontecido, o que te importa? Até outro dia você mesma me incentivava a ficar com ela, não se lembra disso? Quem não sabe o que quer é você, Zira!
- E parece que você seguiu direitinho o meu conselho, não é mesmo? Volte para ela, então, e me deixe em paz.
- Você me mandou embora, lembra? Você não vê o quanto me machuca porque é mimada e egoísta!
- Não ouse jogar a culpa em mim! Estava tudo bem até você querer insistir nessa história!
- Está cometendo o mesmo erro que cometeu da primeira vez. – disse ele sentindo os olhos encherem de lágrimas. – Está me jogando para fora da sua vida de novo.
- Você pediu isso!
- Não, eu pedi para ficar com você e você me mandou embora! E você sabe que me ama, não minta!
- Eu não te amo mais. – gritou ela com raiva, e novamente o brilho rosado surgiu no fundo de seus olhos. – Eu disse que não ia aguentar que me machucasse de novo.
- Eu não fiz nada, Zira! – gritou ele também.
- Eu odeio você Ambaris. Odeio! – deu um passo para trás para ganhar espaço e voar, mas ouviu um barulho estranho.
- Você gosta de me manter como seu "animalzinho", não é? – perguntou irritado e deixando uma lágrima escorrer. – Gosta de me ver rastejar aos seus pés para depois me botar para fora da sua vida.
- Que barulho foi esse? – Zira olhou ao redor, mas Ambaris estava tão irritado que não percebeu o que ela dizia.
- O que mais você quer de mim? – gritou, e na mesma hora ela viu o que era o barulho. Um enorme bloco de neve se soltou no alto da montanha e deslizava descendo direto na direção dele.
- Ambaris! – gritou e o empurrou com toda a força para trás derrubando-o perto da entrada da gruta. Ele caiu para trás e viu a neve soterrá-la.
- ZIRA! Não! – berrou e se levantou correndo, tentando encontrá-la no meio da neve.
Nova e Carol acordaram, sentiram o desespero dele e correram imediatamente para a entrada da gruta. Encontraram-no desesperado, ajoelhado e cavando na neve, chamando por ela. Eles logo entenderam o que tinha acontecido e se juntaram a ele, jogando neve para todos os lados.
Com toda a confusão, os outros acordaram, e logo estavam todos na entrada da gruta, remexendo a neve em busca de Zira. Carol achou uma das asas e gritou. Eles ajudaram a tirá-la de debaixo de toda aquela neve, estava molhada e desmaiada. Seus lábios estavam roxos e uma das asas estava quebrada, mas ainda estava viva. Eles a levaram para dentro da gruta e a aqueceram enquanto Nova checava se ela respirava. Beto apalpou a asa e identificou o osso quebrado, estava fora do lugar e teria que ser reposicionado. Ele segurou firme a asa e deu um tranco para colocar o osso na posição correta. Ela acordou com a dor e gritou. Nova a segurou, evitando que debatesse a asa quebrada e Beto improvisou uma tala com uma das hastes de sua barraca e imobilizou a asa dela. Zira chorava de dor, mas não se debatia mais. Ambaris segurava a mão dela, mas ela se desvencilhou e segurou a mão do irmão. Não queria que ele se aproximasse, já a tinha machucado demais. Ele se afastou aos poucos e sentou-se no canto da gruta arrasado. Chorou muito enquanto ela era tratada e ninguém prestava atenção nele. Aquela tinha sido a derradeira despedida. E não seria uma lembrança boa. Também não seria esquecida por nenhum deles. Quando partiram da gruta, Ambaris estava apático. Como uma concha vazia, sem expressão alguma, tinha deixado de pensar e apenas fazia seu corpo reagir. Estava exausto. Zira estava montada no seu cavalo ao lado do irmão, também muda.