Morto.
O médico disse que o bebê estava morto.
— Vamos ter que tirar agora — berrou ele para a equipe que empurrava a maca às pressas.
— Tirar? Do que está falando?! Eu não quero tirar! Ai! Ahh!
Ela se debatia enquanto a arrastavam pelo corredor.
— Tira essa coisa de cima da minha barriga! Eu não quero que você tire o meu filho. Não toca nele! Fernando! Fernando!
Então ela desapareceu do meu campo de visão, me restando apenas a companhia de um enfermeiro irritado e um segurança pronto para me jogar no chão, enquanto minha irracionalidade me fazia gritar impropérios para os dois homens que tentavam me impedir de correr atrás da minha namorada.
O que aconteceu depois que segurei o corpo mole de Sabrina na loja passou como um borrão em minha mente. O alvoroço, várias pessoas ligando para a ambulância simultaneamente, a poça de sangue no chão do estabelecimento, Sabrina agarrada ao meu braço, como se eu fosse a única coisa que a impedia de sucumbir ao completo desespero.
— Já acabou? — indagou o enfermeiro, me encarando furiosamente.
Ele não tinha culpa, não merecia o empurrão inconsciente que lhe dei quando tentou me barrar na recepção. Por isso o segurança foi chamado, para me impedir de continuar avançando pela emergência atrás de Sabrina.
Eu fiquei fora de mim. Vê-la naquele estado, gritando de dor e chamado por mim sem que eu nem ao menos pudesse ficar ao lado dela, me transtornou.
— Me acompanhe — ordenou o segurança.
De volta à racionalidade, respirei fundo e passei as mãos pelos cabelos. Aquela era a parte em que o segurança me escoltaria para fora do hospital. E eu de fato teria sido expulso, não fosse pela aparição da enfermeira chefe, que me reconheceu por causa de quem é o meu pai.
Graças a ela, consegui ficar no corredor, onde teria acesso mais facilmente ao invés de ficar na sala de espera, que é o pior lugar do mundo.
Sem poder fazer nada, me encostei na parede e, de braços cruzados, fechei os olhos. Ali fiquei por longas e dolorosas duas horas.
O bebê estava morto e nem tivemos a chance de conhecê-lo.
A verdade é que, se fosse no começo, eu não me importaria muito. Nem ela. Ambos estávamos assustados demais com a ideia de sermos pais, e com medo de nossos próprios pais. Mas agora, três meses depois, já existia um certo vínculo com aquele ser minúsculo que crescia dentro da barriga dela. Já até discutíamos o sexo do bebê, caramba!
— Quando ela for adolescente e nós três sairmos juntos — dizia ela, duas semanas atrás, noite em que estávamos deitados no grama do quintal da casa dela, acompanhando a posição de Órion no céu — as pessoas vão achar que somos irmãos, ou amigos, mas nunca vão adivinhar que somos os pais jovens e sexys dela.
Mas agora já era.
Eu nunca tinha me sentido tão arrasado e isso que era o mais estranho. Não foi o que eu desejei tanto esses três meses? Que Sabrina não estivesse grávida?
Não desse jeito.
Não isso. Não assim. Estava errado.
De repente me peguei pensando que, agora que era tarde, eu queria. É... talvez uma parte minha quisesse mesmo. Eu queria conhecê-lo. Mas era tarde.
Olhei para o carrinho de cristal em minha mão e quis atirá-lo na parede. Só não o fiz porque estava no hospital.
— Garoto.
Era o enfermeiro. O mesmo com quem eu tinha gritado duas horas atrás por não me deixar ficar com Sabrina.
— Já pode vê-la, se quiser — o tom de voz dele não era muito amistoso.
Desanimado, desencostei da parede e o segui. Eu queria vê-la, mas não tinha certeza se era o melhor momento.
Sabrina deveria estar arrasada, ainda mais que eu. Ela precisava de alguém que a desse consolo e eu não era a pessoa mais indicada no momento.
— Obrigado — agradeci ao enfermeiro quando me deixou na porta.
Entrei devagar, procurando não fazer barulho.
Sabrina estava deitada na cama ligada a uma bomba de soro e uma máquina que registava seus batimentos cardíacos. Ela estava sem cor, apática, encarando para o nada. Os olhos, vazios.
— Sabrina — falei baixo, pegando sua mão.
Ela finalmente percebeu minha presença e me olhou com aqueles olhos cheios de lágrimas.
Fechei os olhos. Doía. Das mil coisas que eu poderia dizer, só o silêncio fez sentido.
— Eu estou bem, Fernando — a voz dela quase não saiu.
Senti sua mão tocar o meu rosto. Estava fria.
Claro que ela não estava bem. Nada estava bem. Sabrina queria o bebê. Apesar das dificuldades, ela queria. Minha mente traçou um caminho rápido até o futuro e não era nada bom. Ela não seria a mesma. Não seríamos os mesmos.
Sem contar que o pai da Sabrina nunca mais me deixaria chegar ao menos perto dela.
— Com licença — duas batidas na porta e alguém entrou.
Era um cara jovem, mas nem tanto, com barba e cabelos pretos, vestindo um jaleco branco. Eu o conhecia, era um dos amigos mais antigos do meu pai.
Ele chegou perto da cama, tirou o estetoscópio do pescoço e o colocou na altura do peito dela, pedido licença mais uma vez.
— Respira fundo para mim, Sabrina.
Ela o fez.
— Como está se sentindo? — perguntou.
— Dormente. — Ela quase não tinha voz.
— É por conta de um medicamento que apliquei no soro para você não sentir dor e ficar mais tranquila — falou com a voz mansa. — Mas já, já passa, tá bem?
Sabrina assentiu devagar.
O médico terminou com o estetoscópio e colocou de volta no pescoço.
— Como vai, Fernando? — perguntou, olhando para mim. — Não imaginei que fosse seu o nome que Sabrina chamava sem parar.
Continuei impassível. Não queria papo com ninguém.
— Então, querem saber o sexo do bebê?
— Não! Queremos que seja surpresa.
— Quê?
Ambos me olharam. E pelo visto, minha voz tinha saído um tanto estranha. Mais estranho que a minha voz era o que eu estava sentindo.
— O que foi, Fernando?
— Disseram que você estava abortando.
Ela colocou a mão na barriga defensivamente com uma expressão horrorizada.
— Quem disse isso? — o médico perguntou e pareceu meio irritado.
— Um médico da emergência.
— Deve ter sido um interno — ele suspirou, impaciente. — Sabrina teve uma hemorragia, o que é muito grave. Pelo que ela me disse, o dia foi um pouco cheio de emoções — ele a olhou e ela esboçou um breve riso de culpa — Provavelmente, foi isso que contribuiu para que seu corpo, que agora nutre outro ser, reagisse com uma crise hemorrágica. Mas não chegou a um aborto.
Coloquei as duas mãos no rosto soltando o um sonoro suspiro de alívio.
— Fernando, nosso bebê está bem — ela segurou minha camisa.
— Com licença. Doutor, preciso que me acompanhe.
— Desculpem, preciso ir agora. Toma conta dessa mocinha, não a deixe ter emoções muito fortes nem fazer esforços exagerados.
Ouvi a porta se fechar dois segundos depois.
Eu não sabia o que dizer, o que pensar, como agir, estava mentalmente esgotado. Então me debrucei sobre ela e a abracei, escondendo o rosto em seus cabelos.
— Fernando... — ela escorregou os dedos pelos meus cabelos acariciando devagar.
O alívio percorreu cada célula do meu corpo. Pela primeira vez desde que eu soube da gravidez, senti vontade de ser pai. Durante aqueles três meses de gestação, enxerguei a paternidade como uma responsabilidade que eu tinha que assumir por obrigação. Mas agora... agora eu queria ser pai daquela criança.
Coloquei a mão na barriga dela. Ele estava lá. Vivo.
Lembrei do objeto que ainda mantinha na outra mão e me afastei para poder lhe entregar. Os olhos de Sabrina se iluminaram ao pegar o cristal azul.
— É tão lindo. Ela vai amar.
Acariciei os cabelos dela, assistindo seu rosto se derramar em felicidade.
Emoções fortes foi tudo o que ela vivenciou naquele dia. A reação da minha mãe, o surto de seu pai, a fuga na loja... como pude ser tão irresponsável? Eu deveria cuidar melhor dos dois.
Naquele instante prometi a mim mesmo que nunca mais permitiria que eles passassem por aquele tipo de situação.
— O seu filho é que é um safado que devia ter deixando aquela coisa dentro da calça!
— Por favor, vocês têm que continuar na sala de espera. Ela ainda não pode...
— Como se ela fosse a inocente! Acha que ele a forçou?! — Era a voz da minha mãe?!
Minha pergunta se respondeu quando, no segundo seguinte, a porta foi escancarada.