Folclore Oculto

By JuliaRibeiro51

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Para Núbia Cabrall a linha entre o natural e o sobrenatural sempre foi tênue, porém sua vida se torna funesta... More

A chegada ao estranho sítio.
Descendente do mal.
A maldição de Ângela
"Tomara que eu não vá para o inferno"
Atração Repentina
O resgate.
Passeio em Família
Um ótimo partido.
Mãe d'água.
O lobisomem
Dormir juntos, como amigos.
Só avô e neta
Sangue.
A controvérsia de Edgar
Privacidade Zero
A Caipora
A revolta da Vila.
O Plano
Linha Tênue
Era um demônio disfarçado de anjo da guarda
Sagacidade de Iara
Plantando discórdia.
O peso da consciência.
As coisas mudam.
O humano por trás do monstro.
Quinze anos de escravidão.
Encontro dos desabafos.
Conflitos familiares.
A Guerra em Fim do Mundo.
A fragilidade da vida
Como virar uma alma do avesso.
A origem de Curupira
Quem chamou o Boitatá?
Imprevisto.
Briga de monstro grande.
Perdendo o Autocontrole.
No mundo dos mortos.
Torturante
Confronto final
Experiência pós-morte.
Aceitação não é perdão.
Fim do Mundo vota 666
Visitando a neta no asilo
Viver Cansa
O Psiquiatra e a advogada
Pois um dia todos partem.
Canção do exílio.
Epílogo
Como Folclore Oculto foi concebido e porque tenho tanto a agradecer

A "lenda" das Icamiabas

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By JuliaRibeiro51


— Eu... Não devia ter mexido nisso, desculpa — disse Núbia colocando o pano vermelho novamente sobre o teclado.

Edgar, no entanto, após o longo silêncio tentou agir de maneira natural.

— Não precisa se desculpar. Eu só fiquei um tanto... impressionado, não sabia que tocava.

Núbia se levantou, ainda meio constrangida, pois apesar da tentativa de Edgar em parecer indiferente, era notável que ver Núbia tocando aquele piano o incomodou deveras.

— Eu... Toco um pouco, fiz só um ano de aula e parei.

— Não devia ter parado — disse Edgar ainda com aquele olhar irresoluto, porém em tom sério.

— Minha tia falava o mesmo, mas... Ela estava muito doente na época e eu perdi a vontade de ir às aulas de piano, na verdade perdi a vontade de ir à qualquer lugar.

Edgar assentiu lentamente.

— Poderia ter praticado em casa, então.

Núbia soltou uma risada sádica.

— Minha tia tinha dinheiro no máximo para comprar aqueles teclados que fazem som de animais.

— Entendo — disse Edgar em um suspiro —. Bem, agora tu tem esse piano, então, por favor pratique, pois tu erraste muitas notas. Foi lamentável.

Núbia arqueou uma sobrancelha concluindo que aquele sarcasmo era prova de que Edgar havia voltado ao normal, porém demorou para que se desse conta do que ele havia dito.

— Espera. Eu posso mesmo? Tocar nesse piano? Tipo, quando eu quiser? — questionou ela, pasma.

Edgar deu de ombros.

— Esse piano é um belo objeto, que reproduz sons ainda mais belos, porém não há ninguém que o utilize há anos, o que é muito desperdício.

Núbia assentiu com um sorrisinho.

— Obrigada. Mas... Se esse piano está aqui é porque alguém tocava, certo?

— Henrique — respondeu ele sem delongas —. Seu bisavô. Ele gostava muito de música, principalmente Beethoven. Ele costumava tocar sozinho, não gostava de plateia, mas todos ouviam suas melodias pela casa e as apreciavam.

— Hum...

Os dois permaneceram em silêncio por mais longos segundos.

Núbia não sabia como agir quando o assunto eram os filhos de Edgar, temia dizer algo errado, temia deixa-lo nervoso ou até mesmo magoado, mesmo que ela não conseguisse imaginar aquele homem chorando, sabia que ele era triste, profundamente triste e não pretendia deixar aquela tristeza ainda maior.

Para sua sorte, porém, quem puxou assunto foi Edgar.

— Aliás... Lembro-me de ter prometido lhe contar sobre a mãe de meus filhos, sua tataravó.

Núbia assentiu já com os olhos atentos. Edgar então apontou com o cajado para o amontoado de caixas no canto.

— Pegue aquela caixa de madeira que está ali, abaixo da outra.

Núbia franziu os olhos, mas fez o que lhe foi pedido, caminhou até o amontoado de caixas, tirou uma grande, mas não tão pesada caixa de papelão do monte, achando logo abaixo uma caixinha de madeira que mais parecia um pequeno baú.

Núbia pegou tal com cuidado e viu que Edgar havia se sentado à mesa redonda no centro do quarto. A garota foi até ele, colocou a caixa sobre a mesa e sentou-se ao seu lado.

— Então?

Edgar deixou o cajado encostado na mesa e abriu com cuidado a caixa que apesar de ter cadeado, estava destrancada.

Logo Edgar tirou da caixa um papel amarelado e um tanto amaçado com o desenho de uma nativa com olhos doces, mas expressão inabalável. Ele entregou o papel a Núbia, depois tirou também um colar de cordão amarrado a um objeto mediano, uma pedra verde que fora esculpida como um sapo. Este colar ele não entregou nas mãos de Núbia somente colocou sobre a mesa.

— Conhece? — perguntou apontando para a pedra em formato de sapo.

— Eu já vi isso num museu, não sei o que significa, mas é indígena — lembrou Núbia sem certeza.

— Exato, réplicas desse objeto foram encontradas em várias regiões do Brasil, são datados de séculos atrás, até milênios. No início ninguém soube o que tais objetos poderiam significar e até hoje nada foi confirmado, mas a teoria mais forte entre os indígenas e estudiosos é que esses objetos pertenciam as Icamiabas, eram amuletos da sorte para elas.

— Icamiabas... Também já ouvi falar, são índias guerreiras, eu acho. Meu professor de história falou sobre elas uma vez, disse que eram as Amazonas do Brasil.

— Sim. Icamiabas é uma tribo só de mulheres guerreiras e independentes, sempre isoladas das outras tribos. É claro que quando os primeiros relatos das Icamiabas chegaram aos colonizadores europeus eles rapidamente relacionaram tais ao mito grego das Amazonas. Elas são parecidas, realmente, mas não iguais. As Icamiabas se defendem mais do que atacam e não odeiam homens, só preferem manter distância. Tanto é que havia uma noite no ano em que as Icamiabas se uniam as outras tribos próximas, e se relacionavam com os índios de tal tribo com o propósito de engravidar. Quando a criança nascia e era uma garota ficava entre elas, se fosse um garoto era entregue ao pai para ser criado pela a outra tribo, diferente das amazonas que matavam os bebês homens.

— As Icamiabas parecem incríveis — comentou Núbia.

— Esse amuleto, por exemplo — prosseguiu Edgar apontando para o a pedra em forma de sapo — é um presente que as Icamiabas davam aos homens com quem se relacionavam. Em algumas tribos o índio que tivesse esse amuleto era admirado, em outras nem tanto.

Núbia assentiu, gostando bastante daquela lenda, porém...

— Isso não é só um mito, né?

— Como tudo que conheceu até agora, claro que não. O ultimo registro das Icamiabas foi em 1953. Entretanto, essa tribo é muito misteriosa, alguns afirmavam ter visto, mas ninguém tinha prova, havia esse talismã espalhado por todo o país e que o povo dizia pertencer a elas, mas também, não havia como confirmar tal relação... Portanto as Icamiabas foram taxadas pela maioria como um mito, mas um bom Cabrall sabe que todo mito tem sua verdade, e o mistério das Icamiabas era algo interessante de mais para o jovem Edgar não investigar.

— Edgar, o aventureiro — debochou Núbia com uma risadinha e Edgar, para a surpresa da garota, somente riu junto a ela, uma risada mais seca, mas uma risada.

— Eu fiquei um ano em busca das Icamiabas. Seguindo os relatos de índios de uma tribo ao norte da Amazônia, eu achei ocas e armas indígenas abandonadas, havia marcas nessas armas, a marca das Icamiabas, aquilo me encheu de esperança e determinação, porém, não seria fácil encontrá-las, definitivamente elas eram boas em se esconder, eram nômades, nunca paravam em lugar algum para que ninguém as alcançasse. Mas eu não tinha nada a perder então procurei por meses e fui entrando na mais espessa e afastada mata, logo peguei alguma doença de selva que até hoje não sei qual foi, fiquei ferido, quase fui devorado por uma onça e não achava uma sequer alma humana para me ajudar. Um dia senti uma febre altíssima, tive delírios, dores horríveis e desmaiei, não sei ao certo quanto tempo dormi, mas logo acordei com o cheiro de ervas a minha volta e fumaça. O cheiro forte torturava meus pulmões, mas logo comecei a respirar com mais facilidade e despertei por completo. Vi alguém de costa com um cocar, manuseando ervas recém-mastigadas, provavelmente pelo próprio individuo, e não tive dúvida que aquele era um pajé, já havia conhecidos muitos, mas ao se virar vi que aquele pajé era diferente... Era uma mulher. Aquilo me deixou confuso, nunca havia conhecido uma tribo em que o pajé fosse mulher, amenos é claro, que a tribo fosse somente de mulheres.

— Você achou as Icamiabas! — disse Núbia com um entusiasmo tão infantil que fez Edgar levantar uma sobrancelha.

— Sim, as achei, mas não fique tão contente, elas cuidaram da minha febre, me fizeram acordar, mas somente para me interrogar. Quase que em respectivo momento de meu despertar, as Icamiabas me amarraram e começaram a tentar arrancar informações de mim, eu notei que seu idioma era algo parecido com a de uma tribo que eu havia conhecido no norte e consegui falar com elas, grande parte com ajuda de gestos e mímica, admito. Disse que estava sozinho e que não pretendia expô-las para o mundo, eu somente queria saber se elas eram reais. Eu estava encantado em ver todas aquelas índias robustas, todo aquele mito se tornando realidade, mas meu encanto acabou quando começaram as torturas. Foram três dias preso, sendo alimentado vez ou outra. Elas não acreditavam nas minhas boas intenções, achavam que eu as entregaria para os homens brancos e aquilo as amedrontava, não posso culpa-las, tanto naquela época como hoje, a civilização nunca foi um bom lugar para mulheres, é normal que elas tivessem medo, por isso mesmo em cárcere eu não sentia raiva delas e realmente não pretendia revelar sua existência a ninguém. Bem, o que importa é que nesse período aprisionado eu conheci uma índia em especial, o nome dela era Inaiê, devia ter minha idade, tinha traços doces e era curiosa com o mundo de fora. No primeiro dia ela não respondeu nada do que eu perguntei, na verdade toda vez que eu abria a boca ela rosnava para mim, então decidi fazer como ela e falar com olhares. Na segunda noite de cárcere ela já havia concluído que eu era de confiança, então tentei falar novamente e dessa vez ela me respondeu. Novamente, usando um pouco de mímica e idiomas indígenas de tribos próximas consegui me comunicar com Inaiê. Falamos sobre nossos mundos, tão diferentes, porém notamos o quão nossas mentes eram parecidas. Ela como eu, gostava de aventuras, e as Icamiabas apesar de guerreiras, estavam sempre se escondendo o que para Inaiê era muito monótono, ao menos acho que era essa a palavra que era queria usar. Seja como for, ela passou a noite mostrando objetos e plantas para mim para que eu dissesse a tradução em português, e tentou me ensinar algumas coisas também, e devo admitir que aquele foi um dos diálogos mais engraçados que já tive na minha vida. Já amanhecia quando ela decidiu me deixar, mas antes, ela pegou uma pedra afiada e disse que queria um pouco do meu cabelo, acho que nunca tinha conhecido alguém ruivo, então eu propus que levasse uma mecha do meu cabelo em troca de voltar para conversarmos de novo, e ela concordou. _ Edgar sorriu de leve _ E assim passei as próximas horas ansioso por seu retorno.

Núbia levantou uma sobrancelha notando qual rumo tomaria a história e Edgar deu de ombros daquele seu jeito sutil.

— Você tem um problema bem sério com índias — observou Núbia.

— Quem sabe. Quando Iara descobriu que minha falecida esposa também era nativa, temi que ela ficasse ofendida ou achasse que eu a via como uma substituição, porém, ela só caçoou de mim dizendo algo parecido com o que tu disseste agora— disse Edgar em um tom que tentava manter seriedade, o que fez Núbia soltar uma risadinha. _ O que importa é que foi de fato uma coincidência minhas duas esposas serem nativas.

— Ok! Minha tataravó era uma Icamiaba, então? — disse Núbia com uma pontada de orgulho e Edgar assentiu. — Caramba, eu descendo de uma índia guerreira! Isso explica tanta coisa.

Edgar revirou os olhos com toda aquela empolgação por parte de Núbia, mas no fundo estava satisfeito com a reação da garota.

— Sim — Edgar então pegou o colar com a imagem de sapo — isso não foi achado, foi ganho. Inaiê presenteou-me com isso no quarto dia meu na tribo das Icamiabas, nesse período elas haviam me libertado do cárcere, portanto que em troca eu desse informações sobre o que elas chamavam de "mundo perigoso", no caso, nossa civilização; elas pretendiam usar tais informações para fugir ou combater qualquer homem branco que encontrassem. No quinto dia a cacique das Icamiabas descobriu que Inaiê estava se relacionando comigo e a repreendeu por isso, e como castigo, voltei a ser prisioneiro. Naquela noite, porém, Inaiê me libertou e decidimos fugir da tribo... Claro que ela não abandonou as Icamiabas com facilidade, pelo contrário, sentiu-se triste com isso, sentia-se uma traidora e eu a compreendia, por isso mesmo estando apaixonado entenderia caso ela quisesse ficar, nunca a forcei a fugir comigo, eu não a colocaria em uma situação tão complicada, não queria vê-la sofrer daquela forma, a decisão veio dela. Dali em diante Inaiê virou minha companheira de caçadas, uma ótima companhia, aliás; eu estava feliz por ter uma mulher forte ao meu lado, e ela por ter um homem que a deixava ser a guerreira que nasceu para ser. — Edgar esboçou um leve sorriso nostálgico e Núbia sorriu junto, tanto pela beleza do romance de seus tataravôs, como por tal lembrar bastante seu próprio relacionamento com Cissa.

— E quando vieram os filhos? — perguntou Núbia apoiando os cotovelos sobre a mesa e segurando a cabeça.

Edgar encostou-se para trás da cadeira.

— Uns dois anos depois. Quando Inaiê ficou grávida de Henrique decidimos parar com nossas aventuras, gostávamos de nos arriscar, mas não queríamos o mesmo para nosso filho. Com o dinheiro que tínhamos das caçadas, mais a ajuda de minha mãe, compramos uma pequena casa no interior de santa Catarina e lá Inaiê passou a maior parte da gestação. Nesse meio tempo minha mãe faleceu por causas naturais, sequer conheceu o neto e eu assumi junto a minha irmã os negócios da família em agropecuária e decidi fazer aquilo passar de algo familiar e simplório, para algo realmente rentável. Para ser sincero, nunca havia me importado com dinheiro, mas o peso da paternidade me fez querer uma estabilidade melhor e acabei descobrindo ser bom empresário. Já Inaiê não se dava bem com cálculos, mas era boa em saber a época certa para plantar e colher, então era uma ótima ajuda.

Edgar prosseguiu: — Os quatro anos pós o nascimento de Henrique foram os mais tranquilos da minha vida, nunca imaginei que gostaria de ser pai de família, mas eu realmente era feliz com Inaiê e Henrique. Ele era uma criança um tanto quieta, mas era carinhoso e sensível, gostava de ouvir os mitos indígenas que Inaiê contava e minhas histórias de caçador, ele adorava passear pelos bosques com a mãe e de cavalgar comigo, eu, Henrique e Inaiê tínhamos uma vida harmoniosa e quando ela voltou a engravidar todos ficamos muito felizes, ao menos no começo. Com o passar dos meses Inaiê começou a sentir falta das Icamiabas e ás vezes parecia distante, mais tarde entendi que sua atitude era porque ela sabia qual seria seu futuro. — Uma penumbra de tristeza pairou sobre Edgar ao final da frase e Núbia entendeu que a família feliz acabava ali. Ele ficou em silêncio e desviou o olhar, e, apesar de sua costumeira expressão neutra, Núbia notou que ele estava com dificuldade de prosseguir.

— Se não quiser contar...

— Já passou, há muito tempo, aliás; não há porque eu não contar — disse Edgar firme.

Núbia decidiu não contra argumentar e tentou ficar inabalável como Edgar, que prosseguiu:

— A segunda gravidez de Inaiê teve complicações desde o inicio, mas ela estava confiante e guerreira como era, seguiu firme nos nove meses de gestação, porém o parto teve uma série de complicações e as parteiras só conseguiram salvar minha filha, que recebeu o nome que já havia sido escolhido por Inaiê.

— Thayna — disse Núbia por impulso. Edgar franziu os olhos, mas não fez questionamentos.

— Sim, Thayna. Não preciso dizer o quão destruído fiquei com a morte de Inaiê, ainda mais considerando nossa última conversa, mas, eu não podia, tive que achar forças, pois agora uma recém-nascida e um garoto de quatro anos dependiam de mim. Lembro-me que quando me informaram da morte de Inaiê, eu estava com Henrique e ele quase se transformou em um chupa-cabra na frente de todos, mas eu o abracei e ele voltou a forma real, eu disse que ele precisava ser forte, pois Inaiê havia se sacrificado pelo bebê que levava no ventre, e que devíamos honrar esse sacrifício e cuidar juntos de Thayna. Ele era tão pequeno, mas tão forte... Um ano depois minha irmã foi morar no México junto ao segundo marido e minha família resumiu-se aos meus filhos. Foi difícil, mas seguimos pelos próximos anos dando forças uns aos outros, eu Thayna e Henrique.

Edgar não deixou escapar uma lágrima sequer, quem sabe por que todas já houvessem secado, ele também não expressou dor e nem precisava, a dor dele estava nas palavras e em seus olhos que fitavam o nada de forma deprimente. Núbia não sabia o que dizer, ela também passou a maior parte da vida dividindo forças com alguém que amava, por muito tempo foi somente Rita e ela, então sua tia partiu e Núbia sentiu um pedaço ser tirado de sua alma. Edgar por sua vez, matara seu pai em um momento de descontrole, perdera sua mãe, irmãos e sua esposa, se apegou a seus filhos com todo o amor que tinha e por fim os perdeu também, Núbia não conseguia imaginar a dor que ele sentira e não queria refazê-lo reviver tudo aquilo.

— Obrigada por me contar tudo isso — disse Núbia.

Edgar respirou fundo e a fitou.

— Eu disse que contaria, não disse?

_ Não sei se devo perguntar, mas sobre o que foi a ultima conversa sua com Inaiê, que você citou agora pouco?

Edgar suspirou.

_ Tudo bem. Como eu disse, a Inaiê estava diferente durante gestação, menos alegre do que era de seu feitio, e então, antes de entrar em trabalho de parto, ela pegou na minha mão e disse que eu havia sido muito importante na vida dela, e ela na minha, mas que não éramos amor pra vida toda, eu não entendi porque ela havia dito isso e depois ela faleceu, e eu pensei que jamais iria saber o motivo, mas o lado bom de ser paranormal é esse, não? Um dia eu estava desesperado porque Thayna não parava de chorar e eu não sabia o porquê, e minha irmã que era quem estava me ajudando a cuidar da bebê, não estava em casa, então eu ouvi aquela voz forte e com sotaque dizer "ela está com cólica, Edgar!", eu me virei e sorri para Inaiê, que sorriu de volta e me disse o que eu devia fazer, depois, quando Thayna adormeceu eu perguntei porque ela me disse aquilo antes de morrer e ela disse que Icamiabas previam as coisas às vezes, e da mesma forma que ela previu que morreria no parto, previu que eu não pertencia dela, o que não a magoou, e então ela sumiu e nunca mais respondeu perguntas minhas, só aparecia para me dar broncas quando eu cuidava errado dos nossos filhos, mas nada além disso, já com os filhos, acho que ela sempre estava presente, eu via eles conversando com ela frequentemente.

Núbia sorriu pensando como seria bom ter alguém que entendesse seus dons na infância e assim não achasse estranho quando falava "sozinha".

_ Será que Inaiê disse sobre você não pertencer a ela porque sabia da Iara?

Edgar assentiu.

_ Imagino que sim.

Núbia sorriu de canto e enfim fitou o desenho que Edgar havia lhe entregado no começo.

— Essa é Inaiê — supôs Núbia e Edgar assentiu. — Ela era linda. Quem desenhou?

— Eu — disse Edgar natural e Núbia a fitou um tanto incrédula.

— Você desenha bem.

— Desenhava e pintava também, com o tempo essa alma artística foi desaparecendo.

— Imagino o porquê — disse Núbia entortando os lábios.

— Em alguma daquelas caixas maiores, há pinturas que fiz de Henrique e Thayna — disse Edgar apontando novamente para o monte a esquerda.

— Posso ver?

— Se estou te indicando — disse Edgar como se fosse óbvio. Núbia bufou pela grosseria, mas foi em direção as caixas. Ela começou a abrir as maiores e achou alguns tecidos na primeira caixa, em outra encontrou garrafas vazias de vinho, e na terceira ao abrir se deparou com uma tela média contendo uma bela pintura de quem Núbia identificou como Thayna.

Ela se ajoelhou a frente da caixa e tirou com cuidado a pintura, Edgar se levantou e foi até ela. Núbia pode ouvir o suspiro dele ao ver o quadro de cima.

— Minha filha era linda — comentou Edgar em tom baixo — tinha uma beleza diferente, a pele avermelhada e olhos negros e rasgados como da mãe, mas os cabelos ruivos e longos.

Núbia sorriu de canto. Queria confirmar o comentário de Edgar, mas se lembrou que ele ainda não sabia sobre Núbia já conhecer Thayna, então somente assentiu.

— Sim... Essa pintura é muito linda, Edgar, você era bom nisso.

— Obrigado — disse Edgar um tanto convencido. Ele estendeu a mão e Núbia entendendo o recado lhe entregou a pintura e voltou a vasculhar a caixa e dessa vez achou a imagem de um rapaz vestido de negro, magro, mas de rosto belo com os cabelos mais escuros do que te Thayna e olhos azuis.

— Esse é meu bisavô? — perguntou Núbia levantando a cabeça para encarar Edgar e ele assentiu.

— Sim, Henrique. Ele não queria que eu fizesse essa pintura, acho que porque já estávamos brigados na época, mas se eu havia feito para Thayna tinha que fazer para ele também.

— Será que eu posso perguntar: por que vocês brigaram?

— Não — disse Edgar simplesmente e Núbia revirou os olhos.

— OK!

Ela logo achou uma pintura que conheceu no mesmo instante.


— Iara! — exclamou ela pegando o retrato — O senhor pintou na mesma época que os outros?

Edgar assentiu.

— Sim, eu conheci Iara dezessete anos após a morte de Inaiê e foi algo inesperado para todas as partes. Eu saí dizendo que havia sido contratado para caçar uma criatura e quando voltei estava apaixonado pela minha caça. Certamente Thayna e Henrique odiaram a ideia.

— Ciúmes?

— Cuidado. Iara é conhecida por seduzir e assassinar homens, digamos que não pareceu nada seguro essa minha repentina paixão.

— Bem lógico — concordou ela com uma risadinha.

— Certamente, eu passei um ano inteiro me encontrando com Iara, sempre em ocasiões inesperadas. Iara surgia como um fantasma quando eu estava viajando ou sozinho em casa. Nesses encontros surgiu um sentimento que nós dois estávamos evitando cada um por seu motivo. Eu estava preocupado com meus filhos e em luto pela minha ex-esposa e Iara tinha uma função no mundo sobrenatural e sentia-se presa a sua cultura e seus ideais.

— Você fala da cultura indígena?

— Também, mas Iara sempre teve facilidade em ajustar-se á qualquer cultura sem esquecer-se da própria. Ela estava mais preocupada com fato de me deixar sair vivo em todos nossos encontros, se envergonhava por não ter coragem de me matar.

Núbia riu.

— Isso é a cara dela. Admito que desde que conheci Iara de verdade, me perguntei como você conseguiu convencê-la a casar.

Edgar fez cara feia, só de lembrar.

—Foi uma dos maiores desafios da minha vida — admitiu ele e os dois riram. — Mas após muita conversa e um acordo bem especificado resolvemos nos unir oficialmente, mas isso foi décadas depois. Nos primeiros anos era somente um romance bem estranho e cheio de problemas. Me lembro quando ela se apresentou para meus filhos, Thayna aceitou fácil a situação, as duas se davam bem, Iara tratava Thayna como trata você, pra dizer a verdade, então logo eram melhores amigas o que me deixou muito satisfeito, mas, Henrique era difícil de convencer, ele nunca conseguiu confiar totalmente em Iara, a achava imprevisível. Eles nunca se deram bem, até Henrique... Até Henrique partir.

Edgar suspirou e fitou Núbia que assentia lentamente.

— Sinto muito — disse ela entortando os lábios e Edgar fez cara de desdém.

— Não sinta. Lamentos sobre o passado é algo inútil.

Núbia desviou o olhar fingindo acreditar na frieza que ele tentava demonstrar.

Ela logo achou na caixa que vasculhava outro desenho, dessa vez era um homem bonito de chapéu com um olhar charmoso.

— É você? — perguntou Núbia arqueando as sobrancelhas. Edgar fitou o desenho de cima e franziu o cenho.

— Sim... Thayna que desenhou, ela reclamava sobre eu nunca ter feito um autorretrato e decidiu fazer um — Edgar soltou uma risada fraca e Núbia sorriu ouvindo aquilo, pois era a primeira vez que ele ria em falar da filha.

— Ela herdou seu talento — concluiu Núbia e Edgar curvou a cabeça com uma expressão um tanto convencida.

Núbia deixou o desenho no colo junto com os quadros de Iara e Henrique e ergueu a cabeça para ver o que mais tinha na caixa e visualizou um livro de capa negra.

— O que é isso? — perguntou ela pegando o livro.

Edgar observou o livro com certo receio.

— É um álbum de fotos, só isso.

Núbia notou um tom sombrio na voz de Edgar e perguntou com cautela:

— Posso ver?

Edgar deu de ombros.

— Pode. Mas... Bem já te contei tudo que devia, da próxima vez quero que você também me conte sobre sua vida, sim? — disse ele a encarado.

Núbia assentiu com firmeza.

— Ok, acho justo.

Edgar sorriu de canto e olhou o álbum novamente com aquele ar sombrio.

— Eu... Tenho outros afazeres... Pode ficar aqui e mexer no que quiser, portanto que arrume depois. Aliás, peça a chave desse quarto à Ângela para que possa vir praticar piano.

Núbia tentou sorrir mesmo vendo que ele não estava tão bem quando tentava demonstrar.

— Muito obrigada, Edgar, muito mesmo.

— Por te dar um piano que ninguém usa?

Núbia ignorou aquele jeito ranzinza e sádico de Edgar e prosseguiu:

— Nem tanto pelo piano, e sim... por me deixar te conhecer melhor.

Edgar ficou surpreso, mas não demonstrou, somente ergueu a cabeça.

— Quero que saiba que pode confiar em mim, Núbia, só por isso lhe contei minha história. Confiança é um sentimento reciproco, não posso esperar sinceridade de ti sem lhe dar o mesmo.

Núbia sorriu e Edgar devolveu com um sorriso mais sutil. Depois ele simplesmente saiu enquanto dizia:

— Tente não mexer nos vidros de conserva, algumas coisas ali podem te matar.

Núbia arregalou os olhos, mas tentou manter a mesma calma que Edgar sobre aquilo.

—Hum... Ok.

Ela olhou o album, mas não ansiava em abri-lo, sua mente estava dominada por outros pensamentos, mais especificamente, sobre as palavras de Edgar "não posso esperar sinceridade de ti sem lhe dar o mesmo." Núbia suspirou, ela não estava sendo sincera com ele, estava mentindo, escondendo o plano de Cissa, agindo pelas suas costas... Respirou fundo tentando manter a consciência limpa e dizendo para si mesma:

— É para o bem do Edgar, Núbia. Ele não sabe, mas é.

...

Iara estava deitada sobre os lençóis da cama do quarto de hospedes, sentindo fraqueza e um tremor leve porém incomodo no corpo. Ela se virou de barriga para cima e ao fitar o forro, viu as madeiras dançarem, como se tais fossem ondas de um mar marrom. Resmungou algo que sequer ela mesma entendeu e notou os olhos pesarem... Logo sentiu um choque e se viu submersa por uma água fria e límpida. Ela arregalou os olhos e se debateu tentando voltar para a superfície, mas várias mãos por seu corpo a empurravam para o fundo. Ela gritou formando bolhas em sua face e já começava a sentir o corpo fraquejando e deixando a água entrar em seus pulmões quando enfim conseguiu erguer a cabeça, não, alguém a puxava pelo cabelo e quando sua face tocou a superfície ela respirou fundo recompondo o ar dos pulmões e ouviu risadas maléficas a sua volta. Seus cabelos ainda eram puxados com força para cima e logo Iara pode ver um de seus agressores, um homem indígena com ombros largos, nu, mas com a pele pintada em várias formas. O Índio sorriu amarelo para Iara, mas antes que ela falasse algo ele voltou a mergulhar a cabeça dela na água, ela podia sentir a presença de outros a sua volta. Enquanto aquele a sua frente mergulhava a cabeça dela na água outro a empurrava para o fundo pela cintura enquanto outras mãos tocavam seu corpo de forma maliciosa.

Iara não se deixava afogar pelas águas, mas estava sufocada por desespero, ela queria respirar, ela queria que aquelas mãos parassem de tocá-la, e por um segundo sentiu-se livre das mãos que a seguravam e a afogavam, nesse momento o único toque que sentiu foi de alguém que pegava em seu ombro, e por instinto ela se virou com o punho fechado, pronta para socar seu agressor e de repente se viu novamente no quarto de hospedes com o braço segurado por Edgar que a olhava um tanto assustado sentado no canto da cama.

— Tu quase me bateste, Tchê! — indagou Edgar.

Iara respirou fundo; fora só um pesadelo, ou melhor, uma lembrança.

Edgar largou o pulso dela com calma e Iara se sentou na cama com um resmungo sonolento.

Provavelmente ele havia se defendido rápido, caso contrário teria levado um grande soco na cara.

— Desculpe. Tive um pesadelo, só isso... Na verdade, nem queria ter dormido, não sei o que aconteceu.

— Você está fraca — disse Edgar em tom baixo — já lhe disse, a quantia de poder que você usou hoje é perigosa, provavelmente se sentirá mal até amanhã.

— Obrigada doutor — ironizou Iara, ela então notou uma bandeja em cima do criado mudo com um copo cheio por uma mistura cremosa. — Vitamina de frutas? Adoro.

— Eu sei. E isso vai fazer bem para ti, lhe deixará mais forte.

Iara deu uma risadinha e pegou a vitamina sem tirar os olhos Edgar.

— Às vezes você é bem fofo, sabia?

Edgar fez cara feia.

— Não me ofenda.

Iara revirou os olhos e bebeu a vitamina, enquanto Edgar a observava daquela forma analisadora.

— Estava sonhando com seus irmãos, não é?

Iara colocou o copo pela metade na bandeja e fitou Edgar.

— Como sabe?

— Tu costuma tentar me matar quando sonha com eles.

Iara entortou os lábios lembrando-se das vezes em que acordou com as mãos no pescoço de Edgar, ou sendo segurada por ele depois de já ter o espancado, coisas do tipo, e sim, em todas essas vezes ela sonhou com seus irmãos, seus assassinos.

— É... Fazia tempo que eu não sonhava com isso. Acho que ando muito preocupada com o passado.

Edgar franziu os olhos e ela notou o quanto ele queria fazer várias perguntas, no entanto, impediu-se.

— Tu não és a única. Contar meu passado para Núbia está sendo doloroso, mas sinto-me nessa obrigação. E para ser sincero estou satisfeito com as reações da guria, quero dizer, Núbia não tem uma visão comum sobre as coisas, ela aceita bem as anormalidades, aprende rápido, se adapta a qualquer realidade. É uma Cabrall de muito potencial, nasceu para o mundo sobrenatural.

Iara sorriu de canto.

— Ow, ele está todo orgulhoso da netinha — debochou ela. Edgar a fuzilou com os olhos, mas ela somente riu e prosseguiu: — Estou gostando muito do que está fazendo, viu, apresentando a Núbia quem realmente é, isso é bom. Pois você sabe que não é nada simpático a primeira vista, ne, muito pelo contrário, você é assustador.

Edgar soltou uma risada fraca.

— Obrigada. Sinceramente, prefiro que as pessoas tenham medo de mim. Mas há exceções, claro, como você e Núbia.

Iara sorriu para Edgar como se dissesse: que fofo. E Edgar que odiava ser visto daquela maneira mudou de assunto no mesmo instante:

— Aliás. Eu ordenei que Noite sobrevoasse a casa de Jorge, ele já voltou e li a mente dele antes de vir para cá.

—E? — disse Iara ansiosa.

— Pelo o que vi seus soldados destruíram a casa de Jorge, quebraram tudo, porém... Não acharam o prefeito nem sua família.

Iara rosnou.

— Aquele covarde fugiu?

— E tu ficou surpresa? — retrucou Edgar sádico.

Iara cruzou os braços com expressão furiosa o que fez Edgar revirar os olhos.

—Iara. Agora que ele está fora será mais fácil dominar este local. Por que está brava?

— Eu queria ver ele feito em pedacinho ou morto na fogueira! — explicou Iara fazendo um biquinho._ Não, na verdade eu queria tê-lo matado! Edgar, ache-o e me entregue, como prometeu! _ ordenou ela o que somente o fez arquear a sobrancelha

Edgar negou com a cabeça de maneira tediosa.

— Já disse que não me lembro de ter prometido nada. Mas podemos sequestrar Jorge e matá-lo mais tarde, nosso foco agora é Fim do Mundo, Iara, precisamos reconquistar essa cidade.

_ É o segundo prefeito que você promete e não me dá! _ berrou ela, furiosa, e quem sabe pela idade, Edgar demorou em lembrar-se de qual havia sido o primeiro.

_ Está falando daquele que me contratou para te matar?

_ Sim! Quando nos conhecemos! _ disse ela ainda furiosa.

_ Eu também não te prometi ele, eu só concordei que ele merecia morrer.

Iara revirou os olhos.

_ Tanto faz...

_ Iara, você sempre me diz para pensar no futuro e não no passado, poderia fazer o mesmo, por favor? _ disse ele tentando manter a paciência, e ela deu de ombros ainda de cara fechada e braços cruzados.

— Vamos focar na vila então...

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Resumindo o passado do Edgar em um meme:


Piadinhas a parte, queria fazer algumas observações:

Boa parte do que escrevi sobre as icamiabas é inspirado em relatos reais. Esses amuletos em forma de sapo realmente existem e estão expostos em vários museus do Brasil e a parte em que o Edgar diz ter achado uma oca com armas abandonas foi inspirado num relato real que aconteceu em 1953 por um pesquisador que também estava atrás das icamiabas. Infelizmente, nunca mais houve nem uma evidencia ou relato de tais, alguns dizem que a tribo delas foi extinta, outros que elas permanecem escondida em algum lugar da amazônia.

Interessante né? (folclore oculto, aqui tem educação, kk) Comentem o que acharam do capítulo e deixem aquele voto camarada kk ;)


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