Pensamentos nítidos em meio a fumaça

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O céu de São Paulo era completamente diferente do céu de Carpazinha, Arthur reparou nisso logo na primeira noite em que chegou. A cidade movimentada criava uma nuvem de fumaça gigante que tampava o brilho das estrelas, impossibilitando a vista que havia se acostumado a ver durante toda a sua vida, e, por mais que não gostasse de admitir, sentia-se intimidado. Repentinamente, sua vida passou de um extremo a outro. A diversão dos shows substituída pela angústia de momentos caóticos, o sossego da antiga cidade trocada pelo barulho constante e até seus pensamentos sobre si mesmo haviam mudado. Arthur sempre conviveu com a sensação de não ser suficiente, mas desde que perdera quase tudo o que tinha, sua certeza sobre isso apenas cresceu.

A verdade é que Arthur Cervero era fraco.

Lembrava-se com clareza da noite no hotel de Santo Berço e apesar de saber que era apenas um parasita, não conseguia tirar aquele pesadelo de suas memórias, a forma como seu pai fora atrás de si no corredor após fugir. Não tinha corrido pela dúvida de aquele ser de fato seu pai ou não, mas pelo medo de que, se fosse, o veria daquele jeito. O que ele era, afinal? Cristopher era corajoso e forte, Elizabeth era uma mulher inteligente e ótima médica, Thiago era bom com palavras e uma ótima companhia, Kaiser tinha seu conhecimento com eletrônicos e Joui possuía suas habilidades de ex-ginasta e espadachim, mas Arthur? Era apenas um homem fraco que não teve forças para sequer proteger quem amava e tudo o que fez foi fugir enquanto tudo desabava ao seu redor.

Não conseguia parar de pensar todos os dias sobre aquele pesadelo porque, no fim, seu pai estava certo. Arthur sempre fugia, sempre corria, sempre seria insuficiente.

E não conseguia tirar de sua cabeça que merecia cada soco que levou naquela noite.

Apertou mais forte a mão de Kaiser enquanto caminhavam em direção ao apartamento, balançando a cabeça para espantar as lágrimas que sabia que não demorariam a surgir. As duas pessoas que mais admirava estavam ao seu lado, não queria estragar o momento. Decidiu focar na textura da mão que segurava, o que por mais que já tivesse feito algumas vezes, continuava interessante, de certa forma. A pele de Kaiser sempre estava gelada, percebeu isso desde o primeiro abraço que o dera, o que era um contraste forte quando comparada a sua, que era quente, e apesar de lhe causar um leve rubor nas bochechas pelo pensamento, gostava das diferenças entre os dois.

Arthur e Kaiser eram quase que completos opostos e, talvez, por isso combinavam tão bem.

Joui também era diferente de si, embora menos do que o outro. Gostava das semelhanças que tinham e o quão bem ambos funcionavam juntos.

Na verdade, os três.

Arthur sempre teve muitos amigos, mas a sincronia com Kaiser e Joui era algo único que nunca tinha presenciado. Desde ao simples roubar de cigarros aos momentos em que mais precisavam um do outro, não importava o que fosse, estavam juntos. Sentia-se grato pela amizade que tinha e a valorizava com todo o seu coração, mas lá no fundo dele tinha algo a mais que por muitos meses escondeu.

Olhou para Joui, que caminhava do outro lado de Kaiser sem soltar sua mão, enquanto relembrava da conversa que teve com ele poucas horas antes, então voltou a olhar para o céu, mesmo que não tivesse nada para ver ali, e permaneceu em silêncio.

Enfim chegaram ao apartamento, que apesar de simples, era confortante para os três. Era apenas um local grande o suficiente para quatro pessoas, com uma cozinha, uma sala, dois quartos e uma sacada que dava vista para os outros prédios que ficavam ao redor.

Kaiser seguiu direto para a sacada já tirando uma caixinha de cigarros do bolso, enquanto Joui seguiu para o quarto que dividia com os dois olhando em volta, fazia um tempo que não botava os pés no local. Arthur o acompanhou, porém atento ao homem na sacada, esperando o momento certo para ir lhe roubar o cigarro a tempo.

— Arthur? — Joui chamou, parado no meio do quarto. — Por que só tem uma cama?

Olhou para onde o japonês olhava, percebendo que ele não sabia até então que as antes três camas de solteiro eram apenas uma grande cama de casal agora.

— Ah, é que o Kaiser e eu dormimos juntos. — Joui arregalou os olhos com a resposta, fazendo Arthur arregalar os seus também ao perceber o quão mal sua resposta soou. Riu, constrangido. — Não, não assim. Eu tava tendo alguns pesadelos e ele sentia frio, então a gente decidiu dormir junto.

Assentiu, entendendo a situação.

— E onde eu vou dormir? — perguntou, olhando confuso ao redor do quarto, percebendo que não tinha nenhuma outra cama ou colchão.

— A gente trocou as nossas camas por essa e desmontamos a sua pro quarto não ficar muito apertado, mas a gente pode montar de novo se você quiser — respondeu, embora seu tom de voz soasse duvidoso ao afirmar que era possível montá-la novamente.

— Não precisa, eu durmo no sofá. Já dormi em lugares–

— Deixa de besteira e dorme com a gente — Kaiser gritou da sacada, claramente não bisbilhotando a conversa.

Arthur olhou para Joui, sorrindo com as bochechas vermelhas e a sobrancelha erguida, numa expressão de "foi ele quem disse".

— Não grita, os vizinhos vão brigar com a gente! — o guitarrista gritou de volta, sem tirar o sorriso do rosto. Virou-se novamente para o amigo, a expressão se suavizando, embora o sorriso permanecesse, mas... diferente. — E aí, vai dormir com a gente, Joui?

Arthur sabia que não devia ter abaixado o tom de voz ao perguntar, não devia olhar para ele da maneira que estava olhando, nem ter dado um passo para frente, se aproximando do mais alto, mas já era tarde para negar a verdade, tanto para ele quanto para si mesmo. Simplesmente não conseguiu se controlar, e ao ver as bochechas do japonês ganhando um leve tom de vermelho, a satisfação anulou qualquer arrependimento que pudesse sentir, a conversa que teve mais cedo serviu apenas de incentivo.

Joui também deu um passo a frente, segurando o olhar firme de Arthur com o seu.

— Você quer que eu durma com vocês, Arthur-san? — perguntou ainda mais baixo, porém no mesmo tom, surpreendendo-o.

Talvez ele e Joui tivessem mais semelhanças do que pensou.

— Consegui pegar um cigarro sem ele ser roubado, é um milagre. — Viraram-se no susto, vendo Kaiser encostado de lado no batente da porta com uma das mãos no bolso e um cigarro na outra, olhando a cena com uma expressão neutra, tornando impossível saber o quanto ele ouviu.

— Há quanto tempo você tá aí? — Arthur perguntou envergonhado, coçando a nuca.

— O suficiente — respondeu simplesmente, dando de ombros.

Olhou para Joui, buscando um auxílio quanto ao que fazer. Kaiser era um homem inteligente, é claro que ele havia entendido o que tinha acontecido. Esperava apenas que ele não entendesse mal a situação. O japonês devolveu seu olhar rapidamente, arqueando uma sobrancelha em uma pergunta silenciosa que Arthur entendia. Assentiu em resposta, então ambos voltaram a olhar para o homem na porta.

— Na verdade, o Arthur e eu queríamos falar com você, Kaiser. 

Um refúgio em seus braçosWhere stories live. Discover now