IX. Localização

571 93 35
                                    

Shouto conhecia o fogo.

O fogo, ele sabia, não fazia distinções, queria apenas crescer. Tocar tudo e todos até transformar todas as coisas em uma única substância. Do pó viemos, ao pó retornaremos. Era simples.

Então não foi uma surpresa para ele sentir o peito se apertar conforme a onda de fumaça escura se infiltrava em seus pulmões e o sufocava lentamente, não foi surpresa sentir o calor desprovido de gentileza tocar sua pele e se agarrar a ela como uma segunda camada inseparável. Shouto pensou que estava de volta à cena do acidente, assistindo às chamas consumirem a fuselagem e se espalharem pela gasolina derramada até atingir a grama seca e as árvores esparsas. Porém, ele estava enganado. Ali, não haviam os gritos costumeiros da mãe a chamar pelos irmãos, não havia o arranhar do asfalto em sua bochecha nem a ardência insuportável em seu rosto que lhe daria uma cicatriz no futuro. Não, pelo contrário, o lugar estava estranhamente em paz.

Foi quando ele soube que aquilo era mais do que apenas um pesadelo sobre um acontecimento passado. No instante em que viu os cachos esverdeados e os olhos verdes buscarem os seus com um grito silencioso. O fogo cresceu e se avivou, labaredas altas e insuportavelmente quentes separando-o daquele que havia se tornada o motivo de sua felicidade. Ele precisava alcançá-lo, afastá-lo das chamas que tentavam uma vez mais lhe tirar tudo aquilo que lhe era querido. Por entre o refulgir rubro-alaranjado, o som de uma risada ribombava no ambiente, incitando-o, provocando-o, empurrando o corpo trêmulo de Izuku para um poço flamejante do qual ele não mais ressurgiria.

Não dessa vez, ele pensou, dedos ensanguentados de arranhar o chão de pedra bruta se fechando determinados, eu não permitirei.

Seus olhos se abriram.

O limite de sua visão foi preenchido por um branco ofuscante e então as cores retomaram seu lugar. Ainda era noite, ele podia ver o céu encoberto por uma camada de nuvens de aparência escura e pesada. Uma grossa coluna negra de fumaça subia em direção a elas, contribuindo para a barreira que o impedia de ver as estrelas. Ele tossiu, mas algo o impedia de alcançar o ar que tanto necessitava. Grogue e sentindo seu corpo falhar ao comandá-lo, Shouto puxou a máscara que cobria sua boca e nariz e se inclinou na maca estreita os dedos apertando o peito enquanto arquejava de forma audível.

Vozes soaram no limite de sua audição, porém, sua mente estava preenchida por um chiado alto e insistente que o impedia de compreendê-las. Uma mão tocou seu ombro e esfregou suas costas, ajudando-o a respirar. Shouto sentia como se seus pulmões houvessem sido passados a ferro e sua cabeça ressoava como um sino.

— Inspire devagar — a voz ordenou. — Você inalou muita fumaça e levou uma pancada feia na cabeça, pode ter tido uma concussão.

Shouto obedeceu. Ignorou o frenesi em seu interior e se concentrou apenas em sua respiração, puxando e exalando o ar com calma como sempre fazia antes de uma apresentação. A sensação rascante ainda estava lá, mas sua cabeça clareava mais a cada segundo que o oxigênio bem-vindo se espalhava por seu corpo. Ele começou a lembrar: o show, o ruído dos aplausos, sardas refletidas em plaquetas prateadas, um estrondo e o fogo, uma máscara de coelho e Izuku gritando seu nome enquanto desaparecia no caos. Shouto se ergueu num rompante, os arredores se tornando um borrão enquanto sua cabeça ainda girava. Uma concussão.

— Não, o que você pensa que está fazendo? — A mesma voz reclamou, empurrando-o para a maca novamente. Uraraka, ele reconheceu. O rosto dela apareceu acima de sua cabeça, as bochechas manchadas de fuligem e os cabelos emaranhados. Sua maquiagem estava borrada e escorria pelo canto dos olhos como se ela estivesse usando uma fantasia de Halloween. Ela o empurrou com mais força. — Não pode se levantar ainda, ordem dos paramédicos.

A Teoria do AmorOnde as histórias ganham vida. Descobre agora