Capítulo 2: Mansão McDonie

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Mal saímos do reformatório e o céu relampejou diversas vezes, denunciando que irá chover e logo as gotas, antes fracas, começaram a cair forte, o que nos fez desviar o caminho. Passaremos a noite em Seoul, até a chuva passar e as estradas ficarem mais seguras. Antes de omma voltar para Osan tínhamos uma casa aqui, que está sendo ocupada, agora, por minha tia, que desde que nasci me rejeita, principalmente com tudo isso que está acontecendo, a depressão depois da morte de appa e Jennie, dos surtos e principalmente as mortes das pessoas que me rodeiam, as que são próximas demais a mim. E por ironia, estamos indo para lá agora.

— Podemos ir para um hotel, sei lá, algo do tipo. — Pestanejo, tentando convencer Chen a ir para qualquer outro lugar menos a casa de minha tia, que de certa forma ainda pertencente a mim e omma.

— Não. Sua mãe disse que se houvesse algo era para irmos para lá, e Mobi, ela é sua tia. Não a expulsará da sua própria casa. — O olho de canto e dou um sorriso sarcástico, logo virando o rosto para o lado oposto, mirando a chuva castigar Seoul.

— Não sabe do que ela é capaz. — Murmuro quase sem voz, apenas para mim. Mas ele sabe, também estava lá.

***

Seoul | Dois anos antes
O dia havia amanhecido e junto com ele uma vontade enorme de chorar, mas como eu sempre fazia, eu engolia o choro, pois estava mais do que na hora de parar. O luto já se abrigou demais dentro de mim, é hora de colocar um ponto final e expulsá-lo a força, mas não sei se tenho forças para fazer isso.
Desliguei o alarme insistente e me levantei, enxugando algumas lágrimas que nem havia percebido que havia derramado. Fui diretamente para um banho rápido e quando sai todo meu corpo se arrepiou, por conta da mudança de temperatura. Sem cerimônias visto-me e desço para o café da manhã, mesmo sem estar com tanta fome. Quando desço o último degrau já observo omma e minha tia colocando a mesa, enquanto Wendy apenas mexe no celular já sentada na mesa.
— Bom dia. — Digo em um tom baixo, mas ainda sim alto o suficiente para omma e minha tia me olharem. — Querem ajuda? — Repouso minha mochila em uma das cadeiras e me aproximo de omma, tomando a panela com kimchi de suas mãos e colocando-a sobre a mesa.
— Obrigada. — Omma sorri e se posiciona para sentar, assim como eu e minha tia. Fazemos nosso prato e começamos a comer em silêncio, bem, elas, já que a fome mais uma vez não se fez presente nessa manhã. — Não vai comer querida? — Ela pergunta, alternando o olhar entre eu e meu prato, ainda cheio.
— Sim, vou. — Forço um sorriso e coloco uma quantidade pequena de Kimchi na boca.
— Está sem fome de novo, Mobi? — Saeron, minha tia, pergunta, com um tom de voz nada agradável.
— Omma. — Seung-wan, ou Wendy, a repreende.
— Nancy, está na hora de conversarmos sério. — Saeron ignora completamente a filha e se dirige a minha mãe. — Desde a morte de Tae-Ho e Jennie, Mobi não come mais e tampouco tem um sono descente, não só ela como todas nós. — Minha tia dispara, fazendo-me controlar o choro ou gritar, pois eu sei que tenho sido um peso nas costas de todas e eu odeio isso, mas não consigo evitar.
— Eu já vou indo. — Me levanto da mesa, pego minha mochila e caminho, parando entre a sala de estar e a cozinha. — E me perdoem, por ser esse peso em cima de vocês. — Engulo uma saliva inexistente e saio, ainda ouvindo um "você não toma jeito", tanto de omma quanto de Wendy.
Saio da casa e bato a porta sem tanta força, mas não dou nem um passo e ouço a porta ser aberta novamente e logo um grito de Wendy chamando por mim. Paro e me viro, vejo-a fechar a porta e correr até mim, surpreendo-me com um abraço forte e caloroso.
— Peço desculpas por minha mãe, ela parece ser mais adolescente que eu, ela não pensa nas palavras, não as mede. — Ela diz um tom baixo, prendendo-me em seu abraço. — Mas saiba, que eu e tia Nancy estamos aqui para você, não hesite, se quiser chorar venha a nosso encontro e faremos de tudo para ajudá-la. — Ela me aperta ainda mais, deixando-me sem ar. Fecho os olhos e me controlo para não chorar, mesmo com o que ela acabara de dizer, não quero ser uma pessoa fraca. Afasto-a e forço um sorriso.
— Vamos, ou iremos nos atrasar. — Digo. Ela sorri em concordância e em seguida entrelaça nossas mãos.
Por causa do mal tempo largamos cedo da escola, tivemos apenas as três primeiras aulas de manhã, já que a chuva piorou e deu queda de energia repentina na escola e logo ficamos de vez em um breu.
O dia estava lindo quando acordei, o sol parecia brilhar mais que diariamente e as ruas mais movimentadas e alegres que o normal. Mas só foi eu e Wendy colocar os pés dentro da escola que tudo lá fora desabou. Começou a chover forte e a trovejar, o céu se fechou completamente.
Wendy e eu aguardamos a chuva cessar um pouco, mas percebemos que não iria passar tão cedo, então tomamos a decisão de ir correndo até o ponto de ônibus mais próximo, com nossas mochilas servindo para nos proteger. Não sabíamos andar muito bem em Seoul, desde sempre fomos criadas em Osan e se nos mudamos para cá, foi apenas por não estarmos nos sentindo bem naquela cidade, naquela.. casa que tanto nos trás más lembranças.
Na época, se mudar para Seoul parecia ser a melhor opção, é longe de Osan e toda a mágoa existente lá. Iríamos recomeçar, mas a dor nos acompanhou até aqui. Omma e minha tia se certificaram de escolher uma boa casa em um bom bairro e claro, com segurança duplicada. Mas talvez o perigo no qual tanto corremos, fugimos, sempre teve ao lado delas, dentro de casa, ao lado do quarto de omma e minha tia e em frente ao quarto de Wendy. Era eu. Sou eu. Eu sou o perigo de qual devem fugir.
Chegamos em casa completamente encharcadas, nada se salvou. Omma se assustou ao ver nós duas naquele estado. Onde estava Chen? De folga, então não podíamos culpá-lo.
Eu e minha prima tomamos banho e vestimos algo quente, tomamos duas xícaras de chocolate quente e depois fomos dormir. Eu dormir nesse dia, sem imaginar que os tormentos e pesadelos de um ano atrás iria resurgir justo nessa noite chuvosa. Tive mais pesadelos em uma noite do que tive em um ano e foi assustador.
Acordei, ainda de madrugada, com omma me chamando desesperadamente. Assim que abri os olhos me agarrei ao seu corpo e chorei ainda mais, meu peito doía a cada soluço, a cada lágrima, meus olhos já ardendo com todas as lágrimas derramadas. Omma me fez uma xícara de chá e eu tomei, fazendo o choro cessar de vez, ao menos por enquanto. O buraco no peito ainda está aqui, cada vez maior e mais profundo. Com calma e cuidado, ela começou a dizer que eu estava gritando alto demais e que não tinha quem não escutasse, pois até Chen que dorme no fim do corredor se levantou assustado com os gritos ensurdecedores. Por cima do ombro de omma, eu olhei para a porta e vi o olhar dele me passando segurança, enquanto o de Saeron me passava medo e me julgava, como sempre fizera. Tentei compartilhar com omma o pesadelo que tive, o quão assustador era, mas não consegui dizer nada, pois já não lembrava de nada. No entanto, meu coração ainda galopava rápido dentro do peito.
— Não precisa me contar, dê tempo ao tempo. Descanse. — Ela disse, acariciando meus cabelos e com a voz carregada. Assenti lentamente, voltando a ficar deitada. O sono demorando a vir, mas veio.
Os sorrisos que eu trocava com Wendy sumiram mais rápido que vinheram, me sentia estranha e não me importava com nada ou ninguém ao meu redor. O luto de Omma pareceu cair todo sobre mim, pois vivia chorando pelos cantos e o sentimento de tristeza era frequente, a saudade que eu sentia daqueles que se foram eram irrelevantes. Minha tia passou a me olhar estranho quando acordamos em um dia e tudo que era vidro estava quebrado inexplicávelmente. Os dedos foram todos apontados para mim, pois eu era a única que poderia ter uma explicação. Meus braços estavam cortados, com sangue que sujaram até meus lençóis.
De onde surgiram?
Não fazia ideia.
São marcas do qual não me recordo e dores que não senti, é como se estivesse dormente, pois nada doía.
A série de psicólogos começaram a partir disso, quase todos os dias eu tentava explicar para eles tudo o que sentia. Mas como podia lhes explicar minuciosamente se nem eu sabia o que estava ocorrendo dentro de mim.
Então eles desistiram de mim, todos eles, e por uns dias eu também.
Não aguentava mais ver omma chorando pelos cantos por minha causa e ver minha tia gritando com ela por está derramando lágrimas por um drama de pré adolescente – para ela, de uma garota mimada –, já que depois da morte de appa e Jennie eu não havia ficado desse jeito. Havia ficado de luto, mas agora está pior. Mesmo nova, eu não me permitir sentir a dor da perda e naquele dia chuvoso ela caiu toda em cima de mim. Impiedosamente. Todo o luto que eu não me permiti sentir veio de uma vez.
Logo vi minha tia e minha mãe cochichando pelos cantos e já tinha certeza que não era boa coisa, pois toda vez que eu surgia elas paravam e me olhavam desconfiadas, deixando tudo ainda mais desconcertante e insuportável.
Wendy havia se afastado de vez, encontrou um grupo de amigas e a eles se juntou, deixando-me de lado. O que resultou em um isolamento completo. Evitava falar com todos, até mesmo Chen, que me viu desabar inúmeras vezes no banco de trás do carro e respeitou meu silêncio, era tão educado que nem fingia que via. Faça-me privacidade com a minha própria dor.
Eu já havia desistido de mim mais vezes que poderia contar, mas ele não. Chen. Ele passou a me fazer companhia frequentemente. Me levava para tomar sorvete, e até fez pipoca para assistirmos junto a um filme, meu filme preferido. Estava melhor do que pensei. Mas toda felicidade acaba e a minha acabou bem rápido.
Por "conselhos" de minha tia acabei em um reformatório, longe da única pessoa que me acalma e estava me trazendo paz. Por conselhos dela, tive que ficar longe de minha mãe e todos que amo por quase dois anos inteiros.
Eu a culpo.
Eu culpo minha tia por ter ficado em um inferno por todo esse tempo.
Eu a culpo pela morte de Lucas, pois se não tivesse ido para lá, ele ainda estaria vivo e bem, mostrando seu sorriso para todos.
Ela é a responsável por toda a minha desgraça. Ela é, não eu.


***

— Mobi? — Saio do transe imediatamente, das lembranças e da raiva que vai me consumindo aos poucos, e olho para Chen, que parece me chamar já há um bom tempo. — Está tudo bem? — assinto, lentamente. — Venha, chegamos. — Ele olha para a casa e sigo seu olhar até a porta dupla, que tem apenas Wendy parada olhando-me com um sorriso lindo e reluzente. Sorrio fechado e saio do carro, sentindo uma sensação estranha percorrer meu corpo quando meus pés tocam o chão. Chen fecha a porta e vai até o porta-malas, tira a mala e caminha lado a lado comigo até a porta. Wendy me surpreende com um abraço apertado e eu quero acreditar que nossa amizade ainda esteja intacta, mas sei que não é verdade. Está sendo apenas educada.

— Mobi, senti tanta falta. — Ela se afasta minimamente, somente para me dizer e logo me aninha em seus braços novamente, que são tão frios quanto cubos de gelo. Tremo, retribuindo rapidamente para que possa me afastar. — Vamos, entre — ela abre a porta, deixando-me ver o lugar que também têm início do meu tormento.

Vejo a sala do mesmo estado que antes. Mesmas pintura e móveis, cada mínimo detalhe não havia mudado nada. Nada além da enorme foto da minha tia substituindo o lugar onde deveria ter uma de toda a família; eu, minha mãe, meu pai e Jennie. Abaixo a cabeça e de soslaio observo Chen entrar desajeitadamente, trazendo consigo apenas uma mala e bolsa pequena.

Dou alguns passos, ficando entre a sala e a porta da cozinha e um corredor, vendo a escuridão que agora o toma. Ouço passos rápidos, secos ao tocarem o chão, e no topo da escada ela aparece. A feição séria faz todo meu corpo tremer e é evidente que não consigo disfarçar o quanto sua presença me incomoda. Cerro o punho e engulo seco, contendo a raiva que vem aos poucos e a imensa vontade de chorar e agarrá-la pelo pescoço. De acusá-la por todo o mal que me fez.

— Senhora Son — Chen murmura, posicionando-se atrás de mim, a voz tão ríspida que sinto-me aliviada de certa forma.

— Jong-Dae — ela praticamente cantarola, descendo as escadas graciosamente, com o ar de superioridade que jamais deixa cair. Que a cada dia só aumenta. — O que fazem aqui? — ela nos alcança, parando na minha frente e involuntariamente agarro o braço de Chen, que me empurra gentilmente para o lado para ficar cara a cara com ela.

— Viemos passar a noite aqui, senhora Son. O tempo está péssimo para irmos até Osan — Saeron abaixa a cabeça e sorri amarelo, dando alguns passos para trás até sentar-se em uma poltrona.

— O que te faz pensar que eu a quero aqui? — Ela me olha com seus olhos mortais.

— A senhora McDonie me mandou trazê-la para cá caso algo acontecesse.

— Nancy não tem mais direito sobre essa casa!

— Vai contrariar sua irmã? Saeron? — ela não o responde, vira o rosto e fecha a mão com força.

— Vamos para um hotel, Chen, por favor! — Sussurro entre dentes. Ele não me ouve.

— Mas tem razão, a senhora McDonie não tem mais direito sobre essa casa — Chen suspira, esfregando a testa e por um instante vejo os olhos de minha tia brilhar. — Mobi tem — ele me olha e fico surpresa ao saber que a residência agora está em meu nome. — Escolha, Mobi, quer ir para outro lugar... ou ficar?

Fecho a mão com força e respiro fundo, os olhos se alternando entre Chen, minha tia e Wendy, que todo esse tempo está atrás de mim, escorada na porta fechada enquanto observa tudo.

— Quero ficar — Chen sorri.

A noite passa devagar, não consigo dormir, então fico em frente da janela, observando a lua sumir e o sol aparecer lentamente, formando uma aurora ao horizonte. O estranho é que, o pouco que consegui manter meus olhos fechados, foi o suficiente para mim descansar e não tive os pesadelos que só pioraram e ficaram cada vez mais frequente conforme os dias foram se passando.

Pela primeira vez em tanto tempo, sinto-me bem, pronta para ir para casa e enfrentar o que tem que ser enfrentado.

Osan.

Never Far Away | Pjm | Série Amor e Fúria - Livro 2Where stories live. Discover now