Capítulo III

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Durante o jantar, Selene se deu conta de que ainda não havia nem mesmo olhado os livros. Isso a inquietou.

Além do mais, toda vez que ela erguia o olhar e via o indivíduo com que dividia a mesa, sentia vontade de vomitar. Meu próprio irmão, meu próprio irmão, pensava incessantemente.

Depois do que pareceu ser uma eternidade, Balken levantou-se e dispensou o restante da família. Selene tentou não correr até seu quarto.

Como de costume, uma criada a esperava num dos cantos do cômodo. Ela rapidamente livrou-a de seus serviços para poder se aprontar sozinha. Colocou duas adagas dentro de seu vestido e mais duas em suas meias, e saiu o mais naturalmente possível.

Desceu as escadas até a biblioteca, decidida. Os guardas abriram as portas automaticamente, como sempre faziam. Ao entrar, não notou nenhuma presença aparente, mas, depois de dar alguns passos sorrateiros, pôde ver a pequena chama tremeluzente de uma vela quase derretida.

— Psiu!— A moça encolhida ergueu o rosto, assustada. Quase sorriu.— Pronta?— Ela assentiu.

Um dos segredos da maioria dos castelos  são as passagens secretas. Há várias delas, em todos os lugares. E o castelo Blackburn não era diferente.

Selene pediu ajuda para empurrar uma prateleira oca que ficava rente à parede. Atrás dela, uma porta ovalada e não muito grande surgiu. A jovem deslizou os dedos pela lombada dos livros até sentir uma textura diferenciada, e então parou. Retirou o exemplar, abriu-o e revelou um pequeno compartimento secreto, semelhante a uma caixa. Os olhos de Marylia estavam tão arregalados que poderiam saltar das órbitas a qualquer momento.

— Ilumine a fechadura— pediu Selene, e destrancou a porta com um cluc abafado.

Quando já caminhavam pelos estreitos corredores de pedra, Marylia ousou perguntar:

— Para onde estamos indo, senhorita?

— Vamos encontrar um... conhecido meu. Um eridanus.

A moça perdeu o fôlego apenas com a menção ao vilarejo clandestino. Para esquivar-se de exclamações e indagações nervosas, Selene falou:

— Por que não quis ficar aqui?— A pergunta era meio estúpida e mal-formulada, mas Marylia entendeu o que menina quis dizer e inspirou algumas vezes para se acalmar, antes de responder.

— Há um mês atrás, mais ou menos, uma colega de trabalho apareceu grávida. Ela nunca disse quem era o pai, mas nós tínhamos suspeitas...— Selene não estava gostando nem um pouco do rumo da conversa.— Bem, certo dia, ela encurralou Tel... seu irmão num dos corredores e começou a gritar com ele, alguns criados ouviram. Dois dias depois, perdeu o bebê e quase morreu por causa da perda de sangue. Quando recobrou forças suficientes para andar e falar, foi despedida. Não quero ter esse mesmo destino.

Selene perdeu o fôlego. Nem sabia o que sentir.

— O-Onde ela está agora?

— Ninguém sabe ao certo. Já ouvi boatos de que ela estava trabalhando nas ruas como... você sabe.

A menina engoliu em seco. As paredes de pedra a sufocavam, tão pequenas, estreitas, abafadas e...

— Senhorita?— As duas se encontravam rodeadas de diferentes portas.

— Vamos por aquela ali— instruiu Selene, com a respiração pesada, apontando para uma que possuía entalhes de ramos e flores.

— Certo...— Marylia hesitou.— Po-Posso fazer uma pergunta?

— Pode, claro...

— Por que está me ajudando?

A resposta parecia simples. Sim, parecia, embora não fosse. Selene não devia sequer dirigir palavras que não fossem comandos aos criados, assim como todos da elite, mas era impossível ignorar o que acontecera. Ela não era desumana, não conseguia ser.

— Eu te ajudei porque... você precisava de ajuda. Faz sentido, não faz?

— Ah, sim. Faz sentido.— Não fazia nem um pouco sentido.

— Ótimo— pigarreou a garota.— Me ajude a desemperrar, está bem? Não temos uma chave, precisaremos utilizar força física...

Marylia interrompeu Selene dando um chute na fechadura. A porta se abriu com um rangido estridente.

— Uau.

A moça deu de ombros e abriu espaço para a garota passar. O frio da noite era úmido e denso, e o manto que Selene vestia pareceu, subitamente, pesado demais.

— Onde está seu amigo?

— Não somos amigos. E não sei onde ele está— respondeu, curvando-se para chamar menos atenção. Marylia a imitou.— Vou achá-lo, espere aqui.

Selene retirou a adaga de sua meia e segurou-a de modo que ficasse oculta atrás de seu braço. Caminhou ao longo da estrutura do castelo atenta a quaisquer movimentações suspeitas.

Quando pensou ver uma agitação por entre algumas moitas, algo tocou seu ombro. Ela se virou tão rápido que quase retalhou o rosto do rapaz com sua adaga.

— Não sabia que estava armada.— Algo em seu olhar contradisse suas palavras calmas.

Selene baixou a lâmina, mas a manteve próxima. O rapaz sorriu e a fitou por uns instantes. Começou por seus cabelos escuros como o fundo do mar, sua pele da cor do luar, os olhos tempestuosos, seus lábios...

— Vamos fazer uma troca— determinou a jovem, desanuviando os pensamentos do garoto.— Preciso que abrigue mais uma pessoa em seu vilarejo.

— E quem seria?

A garota assoviou, e uma silhueta se revelou ao redor dos ramos e treliças que escondiam a passagem secreta.

— Te darei os livros se você me der sua palavra.

Ele analisou Marylia por alguns segundos, e então começou a gargalhar.

— Qual é o seu problema?— arquejou Selene.

— Qual é o meu problema? Está falando sério?

— É óbvio! Por que não estaria?

— Por favor, você quer que eu acredite que ela é apenas uma criada precisando de abrigo?

— Sim!

Ele revirou os olhos e cruzou os braços. O manto preto que vestia oscilou com o movimento.

— Eu ordeno que faça isso— disse a garota. Odiava ter de ditar ordens, mas era necessário.

— Pode ordenar à vontade, eu não vou levá-la ao vilarejo.

Marylia arfou ao ouvir as palavras audaciosas do rapaz.

— Você sabe qual é a punição para desobediência?— ameaçou.

— Não, Vossa Alteza, gostaria de demonstrar para mim?— ironizou. Todos do reino sabiam muito bem quais eram as punições.

— Não tem medo do que eu posso fazer com você, garoto?

— Na verdade, não mesmo — retrucou, com um sorriso de canto.

Selene quis arrancar o estúpido sorriso de sua cara com um tapa, porém, ao invés disso, encostou a lateral gelada de sua adaga no queixo do rapaz, que se empertigou.

— Parem!— suplicou Marylia.— Não se matem na minha frente, por favor!

Selene retirou a faca lentamente, deixando um filete mínimo de sangue para trás ao limpá-la nas pedras cinzentas do castelo.

— Então é assim? Não vai levá-la?— Ele sacudiu a cabeça, peremptório .— Tudo bem, fique sem os livros, então. E saiba que sua sábia decisão também renderá um racionamento de comida para todos os habitantes.

Ela tentou passar por ele, mas sua voz grave a impediu de continuar:

— Vocês são todos iguais, não é?

— Às vezes temos de ser.

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O Encanto da LuaWhere stories live. Discover now