Uma questão de fé

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Seria mesmo esse o triste fim dessa garota, o de morrer anônima neste hospital... Pensava Renée, recluso no conforto médico, um lugar que havia se tornado seu lar nos últimos dias. Junto aos seus pensamentos havia uma pilha imensa de livros e artigos de Medicina, resultado de uma procura frenética por alguma coisa que pudesse ser feita para reverter o quadro clínico da garota e esse esforço exasperado o consumia. 

Era uma época onde se discutia muito sobre os limites da vida, sobre os critérios de morte cerebral e o irremediável fim da vida consciente, ou seja,  e até onde um coma era definitivo ou não. Mas, esse caso desafiava qualquer perspectiva clínica estabelecida, para começar era impressionante a rápida recuperação dos ferimentos, a vertiginosa reconstituição dos órgãos internos e a consolidação das fraturas, tudo nessa garota desafiava o que a medicina estabelecia como possível... Sem falar nas tatuagens... No seu fatídico acidente... E de onde essa garota viera... Se tratava de tantos mistérios, que Renée procurando por respostas acabou adormecendo em meio a pilha de livros. 

Algumas horas depois, despertou assustado e ainda exausto pelo esforço e tensão, tanto que resolveu ficar ali mesmo no conforto médico e repousar até amanhecer o dia na esperança que alguma coisa acontecesse.

Um novo dia chegou e a expectativa de algo, qualquer coisa que pudesse se traduzir em esperança, também despertou com força em Renée. Durante a noite, havia pesquisado muito e descobriu uma publicação de um grupo de médicos Russos que haviam conseguido reverter um coma profundo e, dado como irreversível, através de estimulação do nervo mediano, era uma técnica muito experimental e não havia sido comprovada em nenhum outro trabalho. Por isso, havia uma enorme suspeita, entre a comunidade científica, de que se tratasse de uma fraude para angariar prestígio, principalmente em se tratando de algo vindo da Rússia, um país distante, de certa forma inacessível e com muita informação controlada. 

Mesmo assim, Renée estava decidido a tentar o procedimento. Segundo o protocolo estabelecido pelo Dr. Oleg Nikolaiev, professor e pesquisador da Faculdade de Medicina da Universidade de Kiev, o tratamento consistia de obter potenciais avocados de estimulação cerebral através de sessões de estímulo elétrico do nervo mediano, com potenciais de baixa voltagem por 5 minutos a cada hora, e para isso, bastava adaptar um aparelho de fisioterapia muscular, baseado em estímulo elétrico e que estava muito na moda do mundo fitness atualmente e, felizmente, havia um disponível no hospital.

Após solicitar o aparelho fisioterápico de estimulação elétrica de baixa voltagem (corrente Russa) e adaptá-lo de modo a estimular o nervo mediano da misteriosa paciente, Renée começou as sessões sob olhar curioso e céptico de quase todos da equipe. 

Era mesmo difícil e angustiante essa sensação de ter que lutar contra tudo e todos por algo que se acredita, e pensar em quantas pessoas já passaram por isso... Quantos mártires, heróis solitários ou mesmo pessoas simples e anônimas que foram submetidas a incredulidade e desdém dos mais próximos mas, que persistiram em sua profissão de fé. Renée inclusive, que agora estava se enquadrando neste pequeno grupo, isso sem lamentar o destino. O mesmo que lhe revelou estar com um raro tipo leucemia muito agressiva e rebelde a qualquer tipo de quimioterapia. 

Era uma artimanha divina, que lhe enviara esse diagnóstico, afim de que repensasse toda uma vida de arrogância,  fruto de uma via abastada com a qual nasceu e de uma capacidade intelectual acima da média. Uma oportunidade para rever seus objetivos de vida amplamente vinculados a conquistas materiais. Junto com a depressão inicial de seu diagnóstico veio a profunda reflexão sobre sua vida e, depois, seu renascimento como ser humano. 

Renée se encontrava agora juntamente daqueles, em provação de fé, principalmente os humildes que trilhavam esse tortuoso caminho, assim como a escritora Cora Coralina que, perdida no meio do sertão, escrevia para seus gatos e bichos, não porque almejava as láureas de uma escritora de renome, tampouco para exibir seus méritos literários, mas, simplesmente porque era algo que precisava fazer. E pensar sobre isso o fez perceber os muitos escritores que, a despeito de todos os seus dons, fracassam por não possuírem o que é essencial, a fé. Sendo esse o princípio básico e indispensável a qualquer um que edifique, ou seja, ter fé na sua obra. 

Renée por sua vez, tendo renascido como uma nova pessoa, após esse terrível ordálio, acabou determinando seu propósito, e tal qual na Oração do Milho, resolveu se tornar: "Humilde e necessário". 

Era mesmo um mundo muito cruel esse nosso, onde se fala a toda hora em esperança e fé, mas na verdade, muito poucos acreditam nisso. Talvez a grande tribulação da vida nesse plano fosse adquirir e manter a fé... E ao que parece, todos estamos aqui para, de algum modo, desenvolvê-la e acima de tudo persistir, de uma maneira ou de outra, na fé. 

Esses pensamentos terminaram por levar os sentimentos do jovem médico para aquela noite fria e chuvosa onde tudo começou, com sua carta de demissão no bolso esperando o dia amanhecer para ser entregue e muitos planos para viver o que lhe restava de vida buscando um sentido para o pouco de vida que lhe restava. Essa mesma noite onde se perguntava, insistentemente, se o mundo havia de ser mesmo apenas o material; se não havia nada além...  Absorto em meio ao seu trabalho e reflexões, subitamente Renée foi interrompido por um colega de profissão...

— Dr. Renée... Poderia me dar um minuto de atenção?

A Última BansheeWhere stories live. Discover now