⁰¹ || Um dia como todos os outros

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       Jamais teria considerado que dores poderiam nos perseguir com tanta insistência

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       Jamais teria considerado que dores poderiam nos perseguir com tanta insistência. Costumávamos crer que para cada ferida existia um antídoto, mas ninguém me alertou sobre as cicatrizes profundas que se escondem no fundo de nossa alma. Como é possível que o amor, algo que outrora é nossa fonte de alegria, se converta em um fardo insuportável que carregamos com o peso infindável da desesperança? Me encontro abraçada por esta escuridão, enredada nela como feto no ventre materno, e minha mente se perde em um abismo de desespero, incapaz de compreender a profundidade da minha dor, gerada pelo o que costumava ser amor.

   — Um passarinho me contou que seus pesadelos voltaram. É verdade? — Indagou com um suspiro carregado de preocupação.
Meus olhos se fixaram em sua figura, enquanto eu me afundava na poltrona diante dele, tomada pela incerteza que me envolvia.
Ele parecia mais feliz desde a última vez que nos vimos. 

   — Não estava de viagem? — Recordava-me da última vez que me vi sentada naquela mesma sala, ouvindo-o mencionar que em algumas semanas faria uma viagem com sua família. Na verdade, até aquele momento, eu ignorava a existência de uma esposa e filhos em sua vida.

   — Concentre-se, querida — O homem inclinou a chaleira sobre cada xícara, despejando a água fervente. — Seus gritos ecoam longe durante horas pela madrugada, e isso incomoda quem escuta. 

   — Então, por causa de alguns burburinhos no meio da noite, optou por largar sua família e vir...

   — ...cuidar de você? — Interrompeu-me com um olhar firme antes de concluir a frase. 

— Sim! — Confirmou. Com cuidado, retirou algumas flores de camomila e folhas de hortelã de um pequeno frasco de vidro e as depositou delicadamente nas xícaras, tampando-as em seguida.

   — Me fala sobre suas noites, quando saí,  você estava bem. O que mudou? — Uma forte dor de cabeça começava a martelar assim que o dia despontava, uma dor que se intensificava à medida que eu permanecia cativa naquela sala, ouvindo-o falar. Eu deveria estar sentindo um nó na garganta por ser obrigada a repetir inúmeras vezes minhas noites sem fim, não mais. Constantemente eu revivia aquele dia enquanto dormia, atormentada por um interrogatório incessante enquanto acordada. Havia um bom tempo que não sentia nada, como se tivesse sido anestesiada. O problema ainda persistia, mas...

   — Você precisa se abrir comigo, não posso te ajudar se não me deixa fazê-lo. — Insistia como o velho e bom psicólogo de sempre. Por que ele acreditava que eu estava buscando ajuda? Ela se foi, aquilo aconteceu e eu me encontrei no centro de tudo, à deriva em um oceano onde, por mero acaso, nasci. Qualquer pessoa poderia ter acometido, então a vida girou sua roda da sorte e lá estava meu nome.

   Não busco consolo algum, aquele que almejava e ansiava, por tanto tempo, nunca fez parte do meu destino. Não se trata de um simples brinquedo quebrado, substituível por outro igual. A vida implacável não oferece substituições, e meu desejo de trocar uma alma por outra, indiferente ao corpo que a abriga, é um fútil lamento. Embora existam cascas semelhantes, às almas que habitam através desta carne efêmera são únicas, inimitáveis, incompatíveis com qualquer forma de cópia, é uma falha, uma tentativa infrutífera. 

MEᑌ ᗪOᑕE CᗩTIᐯEIᖇOWhere stories live. Discover now