Corações partidos

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No sábado de manhã, quando Lia abriu a janela do quarto, a chuva fina escorria pelo vidro. Ela tirou o tênis e a roupa de corrida que já tinha vestido, e voltou para cama, realmente precisava de um dia só para ela e seus sentimentos esmagadores. Quando pegou o celular viu que tinha mensagem de Peter, suspirando e sentindo vontade de matá-lo sem nem mesmo ter as lido, ela abriu a conversa:
" - Oi linda, já voltou de Navegantes? Espero que esteja bem e que tenha matado a saudade da sua irmã! Domingo eu passo aí para fazer uma visita, beijos."
Lia sentiu o peito queimar de ódio, seus olhos se encheram de lágrimas da mais pura raiva.
" -Vá pro inferno." _Respondeu.
Jogou o celular no tapete e deitou-se na cama, cobrindo-se com o edredom até a cabeça, esperando que quando voltasse a acordar Peter estivesse de volta aos Estados Unidos ou no raio que o parta, ela não se importava, só queria ele longe de sua vida.

***

Nathaniel estava na sala encarando a televisão desligada. Não conseguia parar de pensar em Lia nem por um segundo, o fato de não saber o que ela sentia, e de não ter dito o que ele sentia estava o matando.
-Por que não vai até a casa dela e acaba logo com essa tortura?! _Rosa perguntou, se sentando ao lado dele.
-Por que a senhora não para de ler a minha mente?!
A mulher riu, batendo nele com um pano de prato que tinha nas mãos.
-É sério meu filho, vá até lá, já está andando muito bem com essas muletas, tenho certeza que consegue pedir um táxi e ir até a casa dela.
-Não sei, Rosa... eu nem ao menos sei onde ela mora, só sei o bairro, mas isso não é o suficiente.
-Liga para o Calvin e pergunta. _Disse, tendo respostas rápidas para as desculpas dele.
Ele suspirou, pegando o celular.
-Oi Cal, tudo bem por aí? sim, tudo certo... Imagino, deve estar exausto. É, não foi só pra isso, sabe o que é... eu queria visitar a Lia, pode me passar o endereço dela? Fique tranquilo, não é nada demais... Ela não vai comer seu fígado por estar me passando o endereço, somos amigos e amigos visitam amigos... Obrigado, te devo mais uma entre milhares.
-Pronto? _Rosa perguntou, ansiosa.
-Sim... _Murmurou ele, nervoso de repente.
-Não pense muito, vá se arrumar enquanto eu ligo pra portaria e peço um táxi.

***

Depois de acordar pela milésima vez naquele mesmo dia, Lia pediu uma pizza e foi tomar banho, estava faminta mas só conseguiria comer depois de estar devidamente limpa. Lia vestiu seu baby doll, deixou os cabelos soltos para que secassem naturalmente e ligou o rádio, colocando na playlist preferida de sábado que ela havia feito com Emma logo que elas haviam se mudado, e após todo o ritual ela poderia enfim comer tranquila.
Ela estava prestes a colocar o restante da pizza na geladeira quando a campanhia tocou. Lia de imediato ficou congelada, se perguntando quem bateria na porta dela em um sábado a noite já que não tinha amigos que morassem perto e sua irmã estava em outra cidade.
-Por favor que não seja o Peter... Por favor... _Ela sussurrava, enquanto ia em direção à porta.
Quando ergueu os pés para checar pelo olho mágico, ela não acreditou na visão que teve.
-Nath? _Indagou, virando a chave na fechadura. -Nathaniel? _Repetiu, agora com a porta aberta e o sorriso tímido dele e os olhos azuis a encarando.
-Oi Lia, desculpe aparecer sem avisar, mas é que...
-Vo-você veio sozinho?
-Sim, você me devolveu essa dádiva, lembra-se? _Ele brincou.
Ela sorriu, nervosamente, ainda em choque com a visita dele.
-Mas é claro! Entra... _Disse, abrindo espaço para que ele passasse e fechando a porta em seguida. -Veio de táxi?
-Infelizmente ainda não voltei a pegar no volante, mas espero que essa seja sua próxima meta para mim.
-Será! Fique a vontade... _Ela murmurou. -Você aceita um pedaço de pizza?
-Não obrigado, Rosa fez uma jantinha espetacular antes que eu viesse.
-E falando nisso, o que te trouxe até aqui? _Lia perguntou, se sentando no sofá e Nath fez o mesmo.
-Então... eu passei o dia todo pensando na conversa que deixamos pendente, e depois de muita insistência de Rosa, eu pedi seu endereço ao Calvin para vir até aqui.
Lia engoliu em seco, ela estava fugindo daquela conversa há dias, mas agora ele estava ali na casa dela, tinha ido até lá apenas para conversar sobre os acontecimentos da viagem e dos sentimentos deles, ela não poderia mais fugir.
-Lia? _Ele chamou-a, percebendo que ela havia ficado calada e pensativa.
-Des-desculpe... você tem razão, Nath, temos alguns assuntos pendentes. _Gaguejou ela, voltando a si.
-Então, eu estive pensando bastante desde o nosso primeiro beijo, na verdade, desde o quase beijo no ano novo, fiquei me questionando o que eu estava sentindo e se você estaria sentindo o mesmo... o fato é que no início eu achei que era só uma carência ou admiração que eu tinha por você, mas agora sei que não é só isso. _Ele fez uma pausa, mas deve ter notado a total falta de palavras e a cara de idiota de Lia, então decidiu prosseguir e falar de uma vez tudo que sentia:
-Tudo bem, eu vou ser mais claro... eu nunca sei se foco em executar os movimentos que você me passa ou se me atento ao modo como você coloca o cabelo atrás da orelha sempre que está desconfortável ou impaciente. Sinto vontade de irritar você a todo segundo só para admirar as caretas e as viradas de olho que você dá. Sempre que você chega eu agradeço a vida em silêncio por ter sido tão traiçoeira e injusta me deixando com sequelas, afinal, esse foi o motivo que trouxe você até mim... mas acho que independente disso, a vida teria dado um jeito de nos juntar mesmo sem toda essa merda. _Ele levantou o braço direito e revirou os olhos.
-Nath... eu... _Lágrimas silenciosas desceram de seu rosto sem que ela as controlasse, e sua voz estava presa na garganta.
Nathaniel ficou assustado, não sabia se ela estava emocionada, feliz ou triste, mas precisava prosseguir, ainda tinha tanto a dizer:
-Eu estive perdido por muito tempo, Lia, antes mesmo do acidente, mas você me fez encontrar o caminho de novo. Eu já desejei estar morto, mas você me faz agradecer por estar vivo todos os dias em que chega com seu sorriso largo e com o ronco insuportável do seu carro azul... o fato é que eu não consigo imaginar mais a minha vida sem as suas pequenas loucuras, sem as suas conversas científicas e suas ironias ilimitadas. _Continuou ele. -Mas eu preciso saber se isso tudo é recíproco como eu acho que é, porque eu não acho possível que eu sinta todos esses sentimentos sozinho, não é o que meu coração diz quando estou com você.
-Isso não é justo... _Ela sussurrou pra si, levantando-se do sofá, sentindo os olhos arderem e a visão embaçar diante das lágrimas que continuavam jorrando.
Lia tinha ouvido coisas sobre ela que ninguém nunca tinha mencionado, Nathaniel havia dito tudo que ela jamais sonhou em ouvir de alguém, e tudo o que ela mais queria era abraçá-lo e poder se declarar também, dizer tudo que sentia e todos os malditos detalhes que ela amava nele, mas não podia. Ela chorava porque sabia que as palavras que diria a ele assim que abrisse a boca seriam mentiras, mentiras forçadas pelas ameaças de Peter.
Nathaniel levantou-se, ela estava com o rosto baixo, fitando o chão, como se não conseguisse encará-lo. Ele ficou apreensivo e confuso, não tinha conseguido entender o que ela havia sussurrado há poucos segundos, mas continuava aguardando pelas palavras dela.
-Ninguém nunca disse coisas tão bonitas sobre mim e nem pra mim... _Encarou-o, fazendo uma breve pausa, engolindo o choro e a dor que atravessava seu peito. -Eu estou lisonjeada, mas acho que você se pre-precipitou... assim como eu.
-Não entendo... _Murmurou ele, fixando o olhar no dela, fazendo um súbito calor percorrer sua pele.
-Eu estava sensível pela mudança de Emma... nossa amizade era a primeira coisa boa que eu tinha depois de anos, e eu achei que estava gostando de você pra valer, mas agora vejo que eu só estava tentando tapar um buraco... _Disse ela temerosa, fazendo uma pausa, com medo das próprias palavras. -Eu me enganei em relação aos meus sentimentos por você, eu estava sozinha e acabei confundindo as coisas, eu sinto muito.
Nathaniel desviou o olhar e fitou a televisão desligada, depois volto-se para ela, com um sorriso fraco e triste.
-Lia, nem você acredita no que acabou de dizer. Quer tentar de novo? _Ele disse, a voz rouca, o peito subia e descia com dificuldade, o ar parecia não passar por sua garganta.
-Eu sinto muito se fiz você achar que sentia algo além de amizade, sinto mesmo, você é incrível, o cara mais incrível que eu já conheci, mas o que eu disse é a verdade, desculpe. _Lia falou e abaixou a cabeça outra vez, não conseguia mais olhar para ele enquanto quebrava seu coração, não podia olhar mais para o rosto confuso e decepcionado de Nathaniel.
-Lia Bauer! _Ele a chamou, e Lia sentiu como se mil flechas atingissem seu coração ao ouvi-lo chamá-la pelo nome completo com a voz embargada e ferida. -Olhe para mim e diga que tudo o que aconteceu entre nós foi apenas uma maldita confusão da sua cabeça.
-É melhor você ir... não quero magoá-lo mais do que já está. _Disse, ainda sem encará-lo, indo até a porta.
Nathaniel ficou parado no meio da sala, o ambiente ficou em um silêncio ensurdecedor. Lia observou quando ele passou a mão calmamente pelos cabelos soltos, jogando-os para trás, como fazia quando estava frustrado com alguma coisa.
-Espero que esteja certa de tudo o que acabou de dizer, porque acaba de quebrar meu coração em mil pedaços e nem a sua amizade fará com que ele volte a ser inteiro outra vez. _Falou, indo até a porta e a fitando profundamente nos olhos. -Tenha uma boa noite.
Nathaniel virou as costas e saiu pelo corredor.
-Eu sinto muito. _Murmurou ela, fechando a porta e passando os braços ao redor do corpo, se sentindo sozinha e mais arrasada do que nunca. Ele tinha preenchido o coração dela com uma alegria que nem imaginava ser capaz de existir, e agora ela estava o obrigando a partir.
Ao encostar-se na porta, suas mãos caíram, tão desamparadas quanto o restante de si.

***

Nathaniel saiu do elevador ainda sem reação, ele sentia vontade de chorar mas as lágrimas não caíam, estavam presas, o sufocando. Ele parou na rua em frente ao prédio e pegou seu celular para pedir um táxi, a chuva antes fraca agora tomava força, deixando Nathaniel além de arrasado, agora encharcado e congelando. Quando o táxi chegou, e Nath saiu da chuva e se afastou do prédio em que Lia morava, pôde ter um pouco mais de clareza e deu vazão aos seus sentimentos contidos até então. Enquanto as palavras dela ecoavam em sua mente repetidas vezes, ele esfregou as mãos nas bochechas com raiva, limpando as lágrimas que começaram a descer uma após a outra. Ele se sentia fraco, estúpido e ligeiramente assustado com o que aquela garota era capaz de fazer com ele, chorar não era algo que ele fazia com frequência.
O motorista olhou para ele do retrovisor:
-Está tudo bem aí, cara?
-Não. _Nathaniel murmurou.
-E tem alguma co...
-Só me leva pra casa, só isso... por favor. _Pediu, encostando a cabeça na janela embaçada por conta da mudança de temperatura.
Aquela havia sido a primeira vez que ele saía de casa sozinho desde e o acidente, e ele imaginou que seria um dia incrível, mas naquele momento ele só desejava nunca ter saído de casa naquele dia, ou talvez, nunca tê-la deixado entrar no coração dele daquela forma.
Quando Nathaniel entrou em casa tentou não fazer barulho, mas Rosa estava sentada no sofá lendo um livro e se virou assim que ouviu o barulho na porta.
-Meu filho, está todo molhado! _Ela disse, indo até ele. -Por que não levou um guarda chuva?!
Nathaniel balançou a cabeça em negativo, devagar, jogando a chave da porta na mesinha de centro.
-Está estranho... o que aconteceu? como foi lá com a Lia?
-Foi um grande erro. _Disse, friamente.
Rosa ficou surpresa com a resposta dele, definitivamente não esperava por aquilo, na verdade, ela nem esperava vê-lo tão cedo em casa.
-Filho, como assim um erro?! você chegou a falar com ela pelo menos? _Perguntou, seguindo-o até o corredor.
-Pode ter certeza que eu falei, falei até demais... e ela cagou na minha cabeça! _Disse, as palavras soaram magoadas e duras ao mesmo tempo.
-Não fale assim, não acredito que Lia tenha tido essa atitude...
-Pois eu também não acreditaria se não tivesse sido o alvo de suas confusões mentais... ou sei lá o que se passa na cabeça dela.
-Pode me explicar direito o que exatamente ela fez ou falou para deixar você assim? _Rosa insistiu, querendo entender tudo aquilo.
-Desculpa Rosa, mas agora eu só quero um banho quente e dormir por uns dez anos no mínimo, até eu esquecer dessa noite de merda.
Rosa fraziu o cenho, com a fisionomia confusa e triste por vê-lo daquele jeito, ela apenas assentiu.
-Se precisar de alguma coisa me chame, eu estarei no meu quarto, querido.
-Obrigado... boa noite. _Murmurou ele.
Em seguida, entrou em seu quarto e trancou-se, fitando o escuro e sentindo o vazio que começava a preenchê-lo outra vez. Desde que conhecera Lia aos poucos ele fora sentindo como se estivesse sendo reconstruído tanto fisicamente, quanto mental e sentimentalmente, mas agora era como se tudo desmoronasse outra vez.
Nathaniel tomou um banho longo e quente, e quando deitou-se ficou se questionando como tinha se enganado tanto, e se estava tão apaixonado e cego que inventou toda o sentimento que ele achou que Lia também sentia por ele. Seus pensamentos, indagações e arrependimentos adentraram a madrugada, impedindo-o de fechar os olhos e dormir, impedindo-o de esquecê-la mesmo que por algumas horas.

O Milagre de nós doisWhere stories live. Discover now