Lia

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  Existem pessoas que tem sorte, uma casa legal, família, vida social e amorosa igualmente fantásticas, e existem as pessoas com extrema falta de sorte, como a jovem, Lia Bauer. Abandonada com 1 ano pelos pais, Lia cresceu em Santa Catarina, no sul do Brasil, ao lado de sua mãe adotiva, Olívia, que havia encontrado ela na saída da escola em que trabalhava como professora na época. Olívia cuidou dela como se fosse sua, apesar de três anos depois ter engravidado de sua filha biológica, Emma. Olívia criou as duas filhas sozinha, já que seu noivo, pai de Emma, rompeu o relacionamento assim que ela contou da gravidez, deixando elas sozinhas e mandando apenas o dinheiro da pensão todo mês, como se aquilo fosse o suficiente para reparar todos os danos que ele criou. Lia havia sido uma criança quieta e de poucos amigos, e virou uma adolescente introvertida, personalidade essa criada em cima do abandono dos pais. Lia soube que não era filha biológica de Olívia apenas aos 15 anos, quando finalmente após várias crises e sentimentos incompreensíveis de rejeição, ela e sua mãe foram em busca de ajuda psicológica. Nas sessões, a psicóloga instruiu Olívia a contar toda a verdade para a filha, o que no começo foi terrível, Lia não conseguia acreditar, saiu de casa por algumas semanas e apenas depois de muita conversa com a mãe e de um pedido choroso da irmã, aceitou as desculpas e voltou para casa. Sua vida não melhorou depois de sua descoberta, alguns anos depois sua mãe foi diagnosticada com uma doença degenerativa, e em menos de um ano ela se foi. Foi difícil nos primeiros meses, Lia ainda não era maior de idade então ela e Emma foram morar com uma tia, e foi um ano de pesadelo, a tia e o marido brigavam o dia todo e ainda tinham os primos, duas crianças insuportáveis que não deixavam as duas em paz. Durante a doença da mãe, Lia passou muito tempo acompanhando as sessões de fisioterapia, isso contribuiu para que ela tivesse um sonho de carreira, sendo fisioterapeuta ela poderia ajudar as pessoas exatamente como ajudaram a mãe dela no pouco tempo em que ela teve antes de partir.
Desde pequena uma das únicas coisas de que ela gostava de fato era dançar, entrou em aulas de jazz aos 5 anos, e sempre foi esforçada em ser a melhor da turma. Seu primeiro emprego foi dando aulas de dança em uma oficina de talentos, com isso, juntou dinheiro o suficiente para alugar um apartamento, e assim que completou seus 18 anos correu atrás de conseguir a guarda de Emma. Sem perder tempo, Lia começou a faculdade de fisioterapia e continuou dando aulas para manter o apartamento e os custos do dia a dia. No último semestre da faculdade ela entrou em uma depressão que a estagnou, atrasou os estudos e prejudicou o trabalho, o que quase lhe custou a casa e a guarda de sua irmã. Depois de muito tratamento terapêutico e remédios, Lia voltou com os estudos e enfim terminou a faculdade. Mas agora, ela era uma jovem adulta de 22 anos, completamente perdida e desempregada.  

  Lia acordou de súbito, estava tremendo e o ar faltava em seus pulmões. Outra crise de ansiedade.
-Cheira a flor e assopra a vela... _Ela sussurrou, repetindo seu mantra, inspirando e expirando devagar. Quando seu coração parou de querer arrombar suas costelas, Lia pegou o celular com as mãos trêmulas e olhou as horas. -Merda...
Faltavam 15 importantes minutos para seu alarme tocar, ela odiava perder mesmo que fosse 5 segundos de sono. Como não ia conseguir dormir de novo, ela se esticou e pegou uma agenda marrom que tinha em sua capa a palavra "diary", era ali que ela escrevia como havia sido sua semana ou depois de uma crise ela escrevia as tarefas que tinha para o dia, isso a ajudava a manter o controle de si.
"Tive outra crise, okay, isso não é nenhuma novidade. Vamos lá, preciso focar em algo... em alguns minutos vou tomar um banho, me arrumar, colocar a comida do sid, sentar no sofá e mexer no celular até dar a hora de eu me atrasar para o último dia de estágio. Falando nisso, finalmente acabou, apesar de eu não fazer a mínima ideia de como começar a exercer a minha profissão pra valer agora... Me formei já tem três meses e não consigo um emprego, nem um paciente com uma escoliose sequer! ISSO É TÃO FRUSTRANTE! Achei que após me formar ia ser tudo um mar de rosas, que ingenuidade a minha, estou mais perdida do que quando estava estudando. Mas se eu ficar pensando nisso vou desencadear mais uma crise, e a que acabei de passar já foi ruim o suficiente. Oh, tem uma coisa legal, vou buscar meu gurgel na oficina hoje, sim... pela terceira vez no mês! Tudo bem, ele não é lá um camaro, e apesar de me deixar na pista algumas vezes, ele me livra de ter que usar a bicicleta elétrica da Emma, que cisma em buzinar sozinha e fazer a gente passar vergonha na rua. E o carro é azul! isso é argumento o suficiente para não desistir dele! Okay, já deu de ladainha por hoje."
Lia fechou o diário e jogou ele embaixo da cama de volta, se levantou e assim que abriu a porta, Sid, o cachorrinho dela, começou a pular em sua perna e lamber seus pés.
-Ei, bom dia pra você também! _Ela murmurou, acariciando os pêlos macios dele. -É... até seus pêlos andam mais hidratados que o meu cabelo.
Lia encheu a tigela dele de ração, já que ele parecia mais impaciente que o normal naquela manhã, e em seguida foi para o banheiro adiantar seu banho, antes que Emma entrasse e ficasse meia hora lá dentro. Na maioria das vezes sua irmã acordava mais cedo – o que Lia alegava ser loucura – mas em dias de estágio Lia acordava bem cedo, muito antes de Emma.
Quando ela saiu do banheiro enrolada na toalha, sua irmã já estava acordada, ou nem tanto...
- Caiu da cama?
-Silêncio, estou em meu transe matinal. _Emma murmurou, se arrastando pela casa.
Lia bufou e seguiu em direção a cozinha, torcendo para que Emma viesse atrás dela. Sua irmã cozinhava bem, e até os ovos mexidos conseguiam ser infinitamente melhores que os de Lia, e para sua sorte, Emma se apressou em pegar a frigideira e tomar a frente na cozinha naquela manhã.
-Mas e então, tá acordada a essa hora por quê?
-A dona Norma do 202 ligou ontem a noite, ela e o marido vão visitar uma parente na Penha hoje de manhã e precisam que eu fique de babá do pedrinho agora cedo.
Emma tinha acabado de completar 18 anos e terminar a escola, mas já trabalhava de babá desde os 15 anos, quando ela e Lia se mudaram e começaram a se virar sozinhas. Para sua sorte, no prédio em que moravam tinham muitas crianças e pais desesperados por ajuda, e bom, ela precisava da grana para o futuro, tinha começado um cursinho de preparação para o vestibular, apesar de ainda não ter certeza de qual profissão seguir, psicologia e nutrição estavam no topo de sua lista, mas seu namorado, Calvin, incentivava ela a seguir a carreira dele, que era médico, mas ela não tinha certeza se aguentaria o tranco de perder pessoas como uma rotina.
-Já estou atrasada, é o último dia de estágio, última remuneração... não sei o que vamos fazer se eu não encontrar um emprego ou arrumar um paciente em menos de um mês!
-Pense positivo, logo logo vai aparecer algum velhinho necessitando dos cuidados das suas mãos de fada, você sempre foi a mais elogiada nos estágios, alguém vai levar isso em consideração!
-Como se a minha vida fosse um trevo de quatro folhas... mas posso começar a tentar exercer toda essa positividade inútil! _Lia resmungou, dando a última colherada nos ovos mexidos e bebendo seu suco. -Volto antes da janta, te encontro em casa?
-Acho que não, quando meu turno acabar o Calvin vai passar para me buscar, vamos comemorar três meses de namoro hoje!
Lia revirou os olhos.
O Calvin era o namorado da Emma, pelo o que ela sabia ele era médico, tinha um carro caro, e não deixava ela dormir sem um aúdio de boa noite, e a única parte de que Lia gostava: ele mandava entregar pizza para o jantar vez ou outra. Mas ela não conseguia aprovar 100% o relacionamento dos dois porque ele era cinco anos mais velho que Emma e por que Lia não o conhecia direito, os dois só tinham se visto uma vez quando ele foi deixar Emma em casa.
-Não comece a revirar os olhos, acho que já está na hora de aceitar meu namoro numa boa!
-Eu só me preocupo com voc...
-Então não se preocupe! ele é um anjo na nossa vida, ou você se esqueceu da pizza de banana que ele mandou que entregasse semana passada só pra te agradar e você comeu ela inteira!
Lia bufou e riu.
-Tudo bem, só quero que me conte caso ele queira dar um passo maior que as suas pernas!
-Não vamos começar nesse assunto, vai adiantar sua vida vai! _Emma disse, rindo. -E vê se antes de vir embora pega logo o telefone do enfermeiro gatinho da clínica que você estagia!
-Vai sonhando! ele nem olha pra mim. -Todos olham pra você, Lia Bauer! _A irmã disse, ajeitando os cabelos longos de Lia.
-Menos os que eu fico a fim... _Ela murmurou, entrando no quarto e deixando Emma terminando seu café da manhã.

O Milagre de nós doisWhere stories live. Discover now