Visita de Tóquio

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No dia seguinte, a dor se manteve conforme o previsto. Ainda que a noite tenha terminado tranquila e bem, aquele dia era o dia de enfrentar, acompanhado da sobriedade e da ressaca, que eu e Nico não estávamos mais juntos. Precisei encarar todas as coisas que ele tinha esquecido na minha casa, os presentes, o porta-retrato, os post-its fofos colados dentro do meu guarda-roupa. 

Ao mesmo tempo, encarei todos os presentes que tinham vindo dos meus pais no canto do meu quarto. Chorei. Chorei de soluçar, chorei com dor. Dormi mais um pouco, acordei novamente e chorei. Todo aquele sentimento se misturava dentro de mim. Se eu estava tão triste, por que não voltar com Nico? Ao mesmo tempo em que eu pensava nisso, eu lembrava exatamente o motivo pelo qual a gente tinha terminado. Não tinha espaço para aquele tipo de comportamento na minha vida e por mais que a noite anterior tivesse soado como um indício de que as coisas ficariam bem entre Hugo e Nico com o tempo, a situação foi extrema demais. Quanto tempo demoraria até vir a próxima crise de ciúmes? 

Ouvi Hugo bater na porta e me chamar. 

— Tá tudo bem aí? 

— Tá sim — Respondi. 

— Quer alguma coisa?

— Não, fica tranquilo. Eu... Quero ficar sozinho, quieto aqui. 

— Tá bom. Se precisar, tô aqui do lado.

— Obrigado. 

Chequei as mensagens no whatsapp. Eram tantas e acabei não respondendo nenhuma. Adormeci com o celular na mão. 

Era pouco mais que cinco da tarde naquele domingo quando despertei com o celular tocando. Era Julio, meu irmão. Estranhei por um momento, mas imaginei que de repente ele quisesse dar os parabéns atrasado. Atendi.

— Oi, Julio.

— Oi, Rafa. Tudo bem?

— Tudo e com você?

— Bem também. Deixa eu te falar... — Nesse momento eu já estava um pouco irritado por ele não ter nem me dado os parabéns e já querer introduzir um assunto. — Onde você mora?

— Eu moro em Pinheiros, pertinho da estação Faria Lima, sabe?

— Ah, sei. 

— Por quê você tá perguntando?

— Tô indo te dar os parabéns. Me espera na estação Faria Lima então, pode ser?

— Ué, você tá no Brasil?

— Eu tô, vim passar uns tempos. Tô indo da casa do pai e da mãe. Eu pego na estação Chácara Klabin e vou até...?

— Até a Consolação, aí você vai lá por dentro até a estação Paulista pra pegar a amarela. E aí desce aqui na Faria. 

— Beleza. Até daqui a pouco. 

Fui até a estação e alguns minutos depois, Julio apareceu. Ele estava bem diferente de quando a gente tinha se visto na última vídeochamada. Durante os quatro anos em que ele estava em Tóquio, meus pais foram visitar ele uma vez, mas ele nunca tinha voltado pro Brasil. E desde o dia de sua mudança, ele parecia passar por uma transformação. Estava super vaidoso, a pele linda, bem vestido. Não parecia a mesma pessoa.

Julio se aproximou, me deu um abraço e desejou feliz aniversário. Era um abraço apertado, um pouco estranho pro relacionamento distante que a gente tinha. Mas era bom ter contato com alguém de casa, depois de tanto tempo.

— E como tá lá em Tóquio? — Tentei puxar assunto enquanto a gente caminhava. 

— Ah, tá legal. Eu gosto do meu trabalho, gosto da cidade. E por aqui?

— Tá legal, também. Fui efetivado há alguns meses, ganhei como melhor trainee, teve um super prêmio e tal. 

— Nossa, mandou bem demais! — Ele fez uma pausa antes de continuar. —  Rafa...Eu soube. 

Julio parecia um pouco desconfortável.

— Tá tudo bem... A gente não precisa falar disso.

— Eu só soube quando cheguei no Brasil. Desde quando você se mudou, e isso eu soube na época, eu venho perguntando algumas coisas pra eles, mas eles pareciam estranhos. Daí quando cheguei aqui hoje, foi mais esquisito ainda. E aí eu perguntei o que que tava acontecendo e eles me contaram. 

— Foi complicado. Eles não aceitaram de jeito nenhum, a gente brigou pra caramba. 

— E por que você nunca me contou?

— Ah, Julio, a gente nunca foi muito próximo né. Faz anos que a gente não se vê. E eu não sabia como você ia reagir. Sei lá.

— Eu sei, você tem razão. Mas por mim você tem que ser feliz, seguir seu coração. Na real, eu desconfiava um pouco. Mas te respeito, aceito e apoio demais. E eu nem poderia pensar diferente...

— Valeu, obrigado mesmo.  — Ter o apoio do meu irmão era a última coisa que eu imaginava que teria. — Mas por que você diz que não poderia pensar diferente?

— Então...

— Então?

— Acho que o pai e a mãe não deram muita sorte nesse sentido. Pelo menos é o que eles pensariam.

— Como assim? Você é...?

— Eu sou bi.

Eu não podia acreditar.

— Julio, quê?

— É sério. — Julio ria enquanto a gente caminhava.

— Ainda bem que a gente tá chegando em casa, porque você vai precisar me explicar isso direito.

— Eu explico. Mas só troco informação por comida.

Chegamos no meu apartamento e seguimos pra cozinha. Enquanto eu preparava a mesa pra Julio comer alguma coisa, continuamos conversando sobre a revelação que ele tinha me feito. Eu estava muito curioso.

— Mas agora me conta, desde quando você sabe que é bi?

— Eu nunca fui muito social, você sabe. Preferia ficar trancado em casa do que sair, tinha pouco amigo. Mas você lembra do Guilherme né? Aquele meu amigo que ia muito lá em casa.

— Lembro, lembro sim.

— Então, naquela época fiquei meio apaixonado por ele, mas eu achava estranho sentir aquelas coisas, então tentei deixar pra lá, fui sofrendo calado e aos poucos esqueci. Só que aí namorei a Paula um pouco antes de ir pra Tóquio e eu gostei dela de verdade. Lá em Tóquio eu cheguei e só ficava com mulher, quando ficava com alguém. E aí um dia um cara chegou em mim numa festa, e eu recusei de primeira, só que dentro de mim eu sabia que queria. Eu sei lá, acho que eu sentia um pouco de vergonha dos meus amigos, não sabia o que eles iam pensar. Mas mesmo assim fui lá e beijei o cara na frente deles, e ficou tudo bem. Eu comecei a sair com esse cara, a gente namorou por dois anos e depois disso eu me aceitei. E é isso.

— Você namorou um cara por dois anos? Eu tô muito chocado.

— Sim, ele era um pouco mais velho que eu. Não terminamos muito bem. Enfim, isso é história pra outra hora. Acho que é sua vez de me contar sua vida por aqui. 

— Peraí, Julio. Tô processando tudo. Até ontem a gente nem conversava direito, hoje eu descubro que você é bi, que namorou um cara e que a gente tem mais em comum do que a gente imaginava. 

Enquanto Julio comia, conversamos sobre minha trajetória gay até ali. A história era longa e os últimos anos incluíam Marco, Hugo e Nico. Uma turbulência seguida da outra. 

— Acho que é hora de você respirar, ficar um pouco longe de caras... — Julio disse. 

E ele tinha razão. 

Amor de Areia (Romance LGBT)Where stories live. Discover now