Lama

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Sorte passou dias tranquilos na companhia dos irmãos Desfleurs e dos moradores da fazenda. Aproveitou para olhar a terra e dar recomendações aos funcionários. No sexto dia, sem vontade de voltar para casa, Sorte entrou na carruagem e partiu. A tarde nublada se transformou em uma noite muito chuvosa, mas ela estava tranquila, afinal, Luando e Tomaz eram condutores experientes.

Na propriedade dos marqueses, os dias passaram tranquilos. Bianca ainda não tivera tempo de conversar com o filho, pois ele trabalhava em demasia. Passava mais tempo com Mirtes que com qualquer outra pessoa. Ofélia dividia-se entre dormir e cuidar da irmã.

A jovem não trocava mais que poucas palavras com Azarado, mas se sentia segura ao lado dele e isso importava. Os pais apareceram para visitá-la, e como seria de esperar, ela não quis vê-los. Azarado mentiu que a esposa estava em repouso e o senhor Weirtz pôs-se a fazer piadas inconvenientes sobre a convivência do casal. O ex-marquês respirou fundo. Não entendia porque Ofélia não queria ver os pais, mas tinha uma noção. O insuportável olhar gélido da senhora Weirtz e a falsidade do senhor Weirtz eram intragáveis.

Em uma das noites Azarado disse para Ofélia que em breve a levaria para longe dali e para a surpresa dele, ela sorriu contente. Começou a fazer planos ao passo que valsava pelo quarto com o camisolão desajeitado.

— Tenho muito apreço por sua família, assim como Mirtes. Entretanto mal posso esperar para respirar novos ares. — A moça comentou enquanto se deitava, vestida naquela roupa que tinha quase duas vezes seu tamanho. Os cabelos bagunçados, e sem fragrância que lhe perfumasse a pele.

Ofélia não se importava com a aparência, estava segura ali em todos os sentidos. E descobriu que a liberdade tinha mais a oferecer do que ela imaginara. Pela primeira vez Ofélia teve o prazer de ler na cama sem ser cobrada sobre sono de beleza e outras bobagens. O marido não se importava. Vez ou outra ele questionava sobre a leitura e de bom grado Ofélia contava sobre as aventuras românticas de um personagem.

— Se preferir, pode deixar Mirtes conosco enquanto se estabelece em outro lugar. — Azarado ofereceu. — Todos apreciam a companhia dela.

Ofélia suspirou enquanto ouvia a chuva cair.

— Não posso. — Ela respondeu.

Tinha medo que o pai dela buscasse a irmã de volta para aquele inferno.

Já era tardinha da véspera de partida de Sorte quando o conde e a condessa receberam uma missiva. A moça explicava que os amigos adaptaram-se bem à fazenda e que no dia seguinte ela retornaria.

Pedro começou a ficar inquieto, e posteriormente desesperado, quando a chuva passou a cair impiedosa. A esposa tentava acalmá-lo, mas o homem teve um ataque de nervos.

Depois de um chá de camomila e quase meia garrafa de uísque, Pedro dormiu. Adália manteve em segredo seu coração apertado. Olhou para o forro do teto até que pegou no sono.

O dia seguinte amanheceu belo. A terra úmida, folhas verdes que ainda pingavam gotas da água da chuva, o sol nascia ameno lançando seus raios sobre o mundo que acordava. O som de cascos batendo contra o solo na frente da casa acordou o casal Olivares. Pedro levantou da cama e correu até o lado de fora da morada vestido como estava.

Deparou-se com duas montarias e quatro homens negros. Dois eram desconhecidos e os outros dois estavam tão machucados e enlameados que quase era preciso adivinhar a identidade.

Pedro sentiu um terrível arrepio quando distinguiu Tomaz e Luando.

Adália chegou próxima ao marido, analisou a cena e colocou uma mão sobre a boca. A outra mão, trêmula, foi para cima do ventre enquanto seus olhos vertiam lágrimas silenciosas.

Luando, que estava menos machucado, chegou ao patrão, em prantos, e contou o ocorrido.

Sorte insistira em viajar mesmo sob a chuva grossa que caía. A visibilidade começou a se tornar muito baixa e por isso a jovem mudara de ideia e falou que parariam na primeira hospedaria que encontrassem pelo caminho.

A estrada começou a ficar deveras escorregadia devido à lama que se acumulava pelo caminho. Luando, que conduzia, diminuiu a velocidade dos seis cavalos principalmente por estarem em uma subida. Foi quando uma pedra, surgida de algum lugar da lateral da estrada, passou rolando frente à carruagem. Os cavalos ficaram assustados e pararam de obedecer aos comandos, se movendo de qualquer jeito.

A carruagem afastou-se de uma maneira estranha e tombou quando a estrada começou a desbarrancar. O carro, os cavalos e as pessoas rolaram quatro metros morro abaixo junto com lama e pedras.

Luando parou de narrar a estória com um nó na garganta. Pedro chorava desesperado, assim como Adália, que se sentou em uma cadeira, pois não conseguiu manter o corpo na vertical.

— Nós procuramos por ela, mas só encontramos o vestido todo rasgado. — Luando completou enquanto chorava em cântaros. A voz estava tão embargada que era quase impossível entender o que ele dizia. — Achamos que ela foi soterrada. Um dos cavalos morreu assim. Viemos avisar e pedir ajuda para procurar o corpo da senhorita Sorte.

Pedro colocou as mãos no rosto e caiu de joelhos sobre as pedras da entrada. O corpo convulsionava de chorar. A culpa por deixá-la sozinha tomava cada espaço do ser. Adália sentiu uma forte vertigem e desmaiou.

Matilde, que pegou a parte final da história, chorava como uma mãe.

Pedro começou a gritar em negativa, sem conseguir acreditar no que acontecia.

Mais tarde naquele dia, Pedro, devastado, organizou um grupo de busca com trinta homens e partiu para procurar o corpo da irmã. Encontraram os destroços da carruagem coberto de muita terra e pedra. Munidos de pás e enxadas, começaram a cavar o morro. As únicas testemunhas do trabalho eram a mata próxima, o céu azul e o farrapo de tecido que um dia fora vestido de Sorte.

A cada vez que Pedro tirava uma pá de terra daquele lugar, sentia seu mundo ruir. Era como desconstruir uma muralha retirando calmamente pedra por pedra. Por vezes chorava, em outras ficava irritado, mas sabia que não importava o que fizesse, sua irmã não voltaria.

Desfazia um túmulo da irmã para colocá-la em outro.

Na fazenda dos Olivares, Adália chorava sem parar. Enviara ao padre Antoine um recado dizendo que precisaria rezar uma missa para a falecida Sorte. E para os Desfleurs enviou uma carta explicando o ocorrido.

Marcel desmaiou quando soube da notícia. Sentiu o coração disparar e em seguida caiu ao chão. Clementine, chorosa, acudiu ao irmão.

Sorte e o Marquês (Donas do Império - Livro 1) [CONCLUÍDO]Onde histórias criam vida. Descubra agora