Prólogo

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O garoto caiu da cama e bateu a cabeça na quina da mesa de cabeceira. Ele encolheu-se no chão, segurando a ferida que sangrava e o grito que estava entalado na sua garganta. Ficou um tempo imóvel no canto, o corpo apoiado na lateral da cama. O sangue escorreu entre seus dedos e pingou no chão. A respiração estava ofegante, o vestígio do pesadelo ainda em sua mente, o terror ainda acelerava seu coração. O garoto ergueu-se lentamente, testando as pernas Nas pontas dos pés, ele correu para fora do quarto, as mãos ensanguentadas pelo corte na têmpora. Ele passou direto o quarto do irmão, dos pais e alguns cômodos vazios. Quase tropeçando nos próprios pés, ele parou em frente a uma porta alta, de madeira velha. Com a respiração irregular, ele esticou o braço para abrir a porta, mas hesitou com a mão na maçaneta.

Você tem seis anos, pensou consigo, não deveria ter medo de sonhos bobos. Porém, quando olhou para o brilho do sangue nas mãos, ele voltou a tremer como se tivesse dois anos. Não vou chorar, não vou chorar. E abriu a porta. O quarto estava escuro, as persianas estavam bem fechadas. Era um cômodo grande, entretanto com grandes espaços vazios, um armário no canto, uma mesa de cabeceira, uma mesinha de três pernas, uma porta para sala de banho e uma enorme cama encostada na parede perto das janelas. O menino engoliu em seco e caminhou até onde uma garota dormia. Ele olhou timidamente para a figura engolida por sombras e lençóis.

— Mika? — sussurrou, nas pontas dos pés. O chão estava frio como gelo e o corpo dele tremeu ao sentir o piso frio na ponta dos dedos. — Mika! — murmurou, balançando-a de leve pelo ombro. A menina resmungou e virou-se para encarar quem interrompia seu sono.

— Alec? — ela falou, bêbada de sono. — O que você está fazendo aqui? — ela esticou-se, sentando na cama. O garoto viu a figura escura de sua irmã se espreguiçar e bocejar ao mesmo tempo. Sua Ama Seca teria repreendido daquele ato brusco e nada elegante da menina. — Já é de manhã? — Mika observou ao seu redor. — Não parece de manhã.

— Mika — voltou a repetir o garoto, as lágrimas escorreram por suas bochechas e se misturando ao sangue que descia pelo pescoço. — Tive um pesadelo.

A irmã o encarou no escuro por alguns segundos. O menino imaginou o rosto de Mika contorcendo-se em uma careta de preocupação. Ela bocejou mais uma vez e saiu da cama, foi até um canto e tateou a mesa de cabeceira. Uma vela acendeu, Alec viu o rosto redondo e bonito da irmã o encarar. Ela caminhou lentamente de volta para cama, colocando a vela em cima da mesinha de três pernas. O menino, encolhido na beirada, observou-a tirar um livro pesado de baixo de um dos milhares de travesseiros de sua cama e colocá-lo entre as pernas cruzadas. Mika acenou para que Alec fosse se sentar ao seu lado. Em um pulo, o menininho subiu na cama e deitou-se, pousando a cabeça machucada no colo da irmã.

Mika arregalou os olhos quando viu o corte.

— Andou caindo da cama de novo? — ele anuiu para confirmar à pergunta. Mika suspirou e passou o dedo indicador de leve no ferimento, que se fechou um pouco ao seu toque. Ela resmungou algo baixinho e abriu o livro. — Qual história você vai querer? Dos canibais? Dos primeiros seres? Da bruxa que colocou fogo em Lieros?

— Da origem! Conte-me da origem! — Disse o menino, entusiasmado.

— De novo? Quantas vezes eu já contei essa história? Não se cansa dela?

— Não — ele falou, sério. — Essa história me acalma.

Mika sorriu, passando a mão nos cabelos rebeldes do irmão.

— Está bem, mas essa vai ser a última vez — ela viu um sorriso tímido surgir no rosto do irmão. Mika aproximou um pouco mais a vela e apertou os olhos para enxergar as minúsculas palavras. — Há muito tempo, o ser humano dominava as terras e os mares. Eles eram arrogantes, prepotentes. Achavam-se superiores as outras criaturas mágicas mesmo não tendo nenhum poder ou algo especial para dizer seu. 'Não preciso de coisas fúteis', diziam, 'tenho tudo e só isso me importa'. Mas os seres não concordavam e alguns já não suportavam a arrogância do ser humano. Os vampiros se organizaram junto com os lobisomens e caçaram os humanos. Os demônios discordavam de tal método e tentaram impedir os vampiros. Os outros seres se dividiram entre esses dois e uma guerra foi travada.

"Muitos humanos morreram no processo e a guerra não tinha previsão para acabar. Então um demônio surgiu. Ele propôs um acordo entre vampiros, demônios e humanos. Ele conseguiu que as três espécies assinassem um contrato de paz e que um conselho de 10 seres fosse formado, cada membro de diferente raça. Muito tempo se passou nessa trégua, porém um membro a destruiu. O humano tentou se vingar de seus semelhantes e matou 5 membros do conselho. A fada, o grilo, a sombra, o íncubos e o vampiro. Revoltados, os outros 4 membros restantes puniram a humanidade com fortes leis e impostos. Os humanos voltaram a serem perseguidos e mortos. O demônio novamente impediu o massacre antes que fosse tarde demais. Dissolveu o conselho e tornou-se rei. Instaurou novas leis e os humanos puderam voltar a andar pelos campos e ruas das cidades. E para homenagear o demônio que trouxe novamente a paz, nosso país adquiriu o seu nome: Infrante".

Mika sorriu e fechou o livro, a garganta ardendo com a leitura. Ela tossiu e passou mais uma vez a mão na cabeça do irmão. Alec estava dormindo, o rosto manchado de sangue e lágrimas. Sem querer acordar o pequeno, Mika saiu de fininho para guardar o livro e pegar a bacia de água que sempre deixava perto da cama. Ela mergulhou um pano limpo no líquido e levemente passou pelo sangue no rosto e no pescoço do irmão. Depois de terminar a limpeza, ela guardou a água vermelha e a bacia, pegando a vela em cima da mesinha para ir ao banheiro. Fechou a porta e andou em direção a pia, porém estancou ao sentir algo escorrer por suas pernas. Sua camisola branca estava banhada de sangue da cintura para baixo. 

Mika engoliu o medo e o terror

Estou morrendo, pensou ela, enquanto apoiava-se na parede, não... isso é sangue de Alec? Não, ele não perdeu tanto assim, ela engoliu em seco, não, eu... acabei de florescer.

Ela sufocou os soluços com a mão, lágrimas inundando sua visão. Ela tentou não chorar, mas não conseguiu aguentar o nó na garganta. Se ela fosse como o irmão, teria apenas lido uma das histórias do grande livro e se acalmado. Porém, isso não funcionaria com ela. Sua vida estava prestes a se tornar um inferno.

A Lei da EspadaWhere stories live. Discover now