32. No meio das pedras

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Júlia vestia uma camiseta grande e Gisele uma camisola de seda. Elas estavam sentadas na pequena mesa que tinha no quarto daquele hotel de quinta categoria. Elas não gostavam de se encontrar em suas casas e ter o chato trabalho de ter que limpar todo o sangue ou dar o que falar para a empregada. Preferiam lugares imundos e de péssima categoria onde o sangue e os gritos não significavam muita coisa e principalmente onde podiam entrar anônimas e sair desse mesmo jeito.

Júlia pegou a mão de Gisele que estava sobre a mesa e a beijou ternamente:

-Vai ficar tudo bem, Gigi. Você sabe que sou ótima em curativos.

-Você exagerou. Passou do limite. E pare de sorrir assim, você sabe disso.

Júlia sorriu.

-Eu te avisei que o dia iria ser longo.

-O pior é que eu sabia mesmo que hoje você estava impossível. Vou ficar com cicatrizes!

-Você sabe que eu amo cicatrizes. Se eu pudesse eu retalhava seu corpo inteiro...

-Eu sei por isso que eu deixo...Mas, eu tenho medo que um dia você me machuque de verdade -Gisele murmurou contrariada.

-Eu me policio para que isso nunca aconteça.

-Mas e se sua sede de sangue for maior e...

-Você sabe que na vida não há garantias... Você quer parar?

-Você sabe que não. Você acha que ficamos assim por causa daquela noite?

-Talvez... -disse Júlia enigmática.

Júlia sabia muito bem que seu gosto por sangue tinha nascido com ela. Lembrava-se dos seus primeiros assassinatos no sítio. Os pequenos pintinhos, passarinhos, patinhos e sapos morriam em suas mãos, nunca tiveram chance. Depois um dia em que estava mesmo furiosa com a caçulinha dos Pereira Leite, a Betina, que fez questão de espalhar a quatro ventos que ela era filha dos empregados, não pensou duas vezes e a afogou, tal como afogava os patinhos.

Para Júlia a morte não era apenas um jeito que ela encontrou de facilitar sua vida, mas significava também prazer, satisfação e poder. Saber que ela era mais forte e inteligente, que comandava as vidas que a rodeavam e que podia eleger ao seu próprio deleite quem merecia ou não viver, para ela não tinha nada melhor.

O incêndio que tinha aniquilado sua família foi o meio que Júlia encontrou de se livrar deles de uma vez. Aterrorizava-lhe a ideia de se ver presa àquela gente que detestava para o resto de sua vida. Apesar de pequena, ela sabia muito bem que se ficasse naquela cidadezinha horrível não teria chance alguma na vida e sonhava, desde que vira pela primeira vez ouro e pedras coloridas e brilhantes enfeitando a senhora Doroteia Pereira Leite, que era com aquilo que gostaria de trabalhar: joia. Júlia carregava no peito a certeza que luxo e beleza só podiam existir em um lugar bem longe dali. Por isso, sabia que tinha que fugir para esse paraíso e a morte de sua família seria seu passaporte.

O vermelho sanguíneo e o desfalecer de uma vida encantavam Júlia desde pequena. Ela sabia que Gisele não era como ela. Era mais fraca, sempre foi, mas foi a criatura mais divertida com que tinha aparecido em sua vida. Ela adorou a temporada de férias em Trancoso que passou com Gisele. Júlia tinha apenas onze anos e Gisele já tinha catorze. Ambas moravam no Rio de Janeiro e sentiram afinidade imediata quando se encontraram em uma terra estranha à beira mar. Amélia era gorda e se recusava a ir à praia. Ficou o verão todo dentro da quarto do hotel pedindo batatas fritas e assistindo televisão. Júlia em compensação seguia todos os dias para praia com seus tios, Débora Marcondes e Eduardo Ribeiro. Foi no mar a primeira vez que Gisele se aproximou com intenções libidinosas. Ela chegou devagar como quem não quer nada e pegou em sua bunda. Júlia adorou. Achou que talvez tivesse sido sem querer, mas no dia seguinte quando brincavam de esconde e esconde nas pedras, que ficavam isoladas em um canto da praia afastado e deserto, Gisele depois de se esconder entre algumas pedras mais altas, que formavam paredes ao seu redor, tirou seu biquíni e, assim que Júlia a encontrou, ela se ofereceu. Gisele foi simples e direta. Completamente nua na areia, olhou dentro dos olhos azuis de Júlia e perguntou:

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