6. Avião

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No avião Miguel não parava de pensar naquela senhora de negro. A surpresa que tinha dado para sua mãe que quase desmaiou de alegria ao vê-lo não tinha detido sua atenção. Ele só conseguia pensar naquela mãe desesperada, tal como uma ideia fixa Miguel não podia evitar.  Ela perturbara Miguel terrivelmente. Pensava nas palavras daquela mãe que acreditava ter tido seus dois filhos assassinados. É curioso ela dizer que não acreditava em coincidências. Um sorriso largo tomou conta nos lábios de Miguel quando ele se lembrou da primeira vez que teve uma discussão com sua amiga Clara sobre sincronicidade e que sempre se repetia, quase como a síndrome do eterno retorno. 

Clara tinha estudado com Miguel na Pinheiros, a famosa Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, mas Miguel, no final, optara por ortopedia, enquanto Clara resolveu seguir o longo caminho da psiquiatria. Mesmo antes de se especializar em psiquiatria, Clara já tinha lido muito a respeito, pois vinha de uma família de psiquiatras e psicólogos. Ela sempre soube o caminho que queria trilhar, entrara determinada a ser psiquiatra, somente não fez psicologia, que também a interessava muito, porque ela queria prescrever remédios, se entendesse necessário. Ela odiava a ideia de lhe faltar poder, ela queria tratar o paciente do início até o fim.

Miguel, apesar de ter aquele jeito maroto de garoto de praia, era fissurado por conhecimento e, por isso, se debruçou nas obras dos grandes pensadores e inventores da nossa história, entre os quais estava, é claro, o grande psiquiatra Jung.

Miguel, sempre extremamente racional e científico, não conseguia conceber houvesse algum sentido lógico na teoria de Jung sobre sincronicidade, já Clara defendia com unhas e dentes que existiam eventos que se interligavam por conta de um significado e, não, por uma causa. “O princípio da causalidade não era a resposta para tudo”, ela gostava de dizer, Miguel ria de sua amiga, pois para ele era inconcebível acreditar que os eventos físicos pudessem ter algum significado, soava por demais místico e sem sentido.

De qualquer forma, talvez fosse por essa crença que os olhos de Clara brilhassem mais que os de Miguel, pois para ela a vida podia, afinal, ter um sentido, podia ser mais que nascer, viver e morrer. Clara acreditava que o universo estava interligado por uma mesma força, energia ou espírito, que penetrava em todas as coisas. Ela tinha a convicção de que nós podíamos sentir a presença dessa força através do nosso inconsciente. Para Clara esse espírito do universo habitava dentro de nós e trazia o conhecimento, as respostas para nossas dúvidas, não, de forma clara e transparente, mas de forma inconsciente. Assim, quando e se o inconsciente abrisse uma porta de conexão com a consciência, tornaria possível para nós, se estivéssemos atentos, percebermos e conhecermos acontecimentos, situações e respostas, que estão além do nosso alcance. Clara queria saber abrir essa porta.

Assim, para Clara existiam respostas, existia conhecimento para os mistérios, existia alguma coisa além do que conhecíamos que a tudo e a todos envolvia. Por isso, para Clara, a chamada coincidência seja de acontecimentos, seja entre acontecimentos e pensamentos ou sonhos, tinha uma relação de significado, de sentido. Clara não acreditava que esse sentido estivesse dentro da própria psique humana, pois ela a conhecia bem demais para saber que dentro dela não existia magia, como lhe ensinou Jung, o sentido estava além disso, talvez nessa força universal. Ela não ousava dizer que sabia a resposta. Ela apenas sabia que havia algo a mais, algo maior.

Miguel, no avião, não parava de sorrir lembrando dos tempos deliciosos da faculdade. A vida estava passando rápido demais, ele já estava formado há cinco anos e parecia que tinha sido ontem que estava sentado na lanchonete com Clara, os dois debatendo, dois entusiastas de suas próprias opiniões. Miguel fechou os olhos e começou a se lembrar.

 -Clara, você só pode estar brincando.

 -Miguel, se você fosse um pouco menos preconceituoso daria razão a mim.

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