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                      Leio no Peuple d'Israel de Renan: "o nascimento, a doença, a morte, a loucura a catalepsia, o sono, os sonhos, tudo isso causava uma enorme impressão e, mesmo hoje em dia, apenas uns quantos têm o dom de ver claramente que estes fenômenos têm causas na nossa constituição".Leio no Peuple d'Israel de Renan: "o nascimento, a doença, a morte, a loucura a catalepsia, o sono, os sonhos, tudo isso causava uma enorme impressão e, mesmo hoje em dia, apenas uns quantos têm o dom de ver claramente que estes fenômenos têm causas na nossa constituição".

                     Não há, pelo contrário, razão alguma para nos admirarmos com estas coisas, porque elas são acontecimentos de todos os dias. Se os homens primitivos não podem deixar de se admirar com elas, muito mais tal acontecerá com os cães e os macacos. Ou estar-se-á a presumir que os homens acordaram, por assim dizer, repentinamente, e que, reparando pela primeira vez nas coisas que sempre tinham estado presentes, ficaram compreensívelmente espantados? - Bem, na realidade, podíamos presumir algo deste tipo; não que eles tinham tido consciência destas coisas pela primeira vez, mas que, de repente, comecem a sentir-se admirado com elas. Mas, mais uma vez, tal nada tem a ver com o seu primitivismo. A menos que se considere primitivo não sentir admiração pelas coisas, o que implicaria que as pessoas de hoje fossem na realidade os primitivos, assim como o próprio Renan, se ele pensa que a explicação científica poderia aumentar a admiração.

                    Como se um raio fosse mais trivial ou menos aterrador hoje em dia do que há 2000 anos.

                     O homem - e talvez os povos - para admirar, tem de despertar. A ciência é a maneira de o voltar a fazer adormecer.

                     Por outras palavras, é completamente falto dizer: os povos primitivos deveriam espantar-se com todos os fenômenos. Embora seja talvez verdade que estes povos se admiravam com tudo o que os rodeava. - Presumir que não podiam deixar de se admirar é uma superstição primitiva. (É supor que tinham de ter medo de todas as forças da natureza, ao passo que nós não temos, evidentemente, que ter medo delas. Por outro lado, a experiência pode ensinar-nos que certas tribos primitivas têm uma forte tendência para recear os fenômenos naturais. - Mas não podemos excluir a possibilidade de povos altamente civilizados virem a estar de novo sujeitos a este mesmo receio; nem a sua civilização nem o conhecimento científico os podem disso proteger. É, porém, verdade que o espírito que hoje preside ao trabalho da ciência não é compatível com semelhante temor.)

                     O que Renan chama bons sens précoce das raças semíticas (uma ideia que me tinha também ocorrido há muito tempo) é a sua mentalidade não poética, que se orienta directamente para o que é concreto. Eis o que caracteriza a minha filosofia.

                    As coisas estão mesmo à frente dos nossos olhos, nenhum véu as cobre.

                   Aqui se separam a religião e a arte.

                                                                                            *

                                                                      Esboço de um Prefácio

                    Este livro é escrito para os que compartilham do espírito que preside à sua escrita. Este não é, segundo creio, o espírito da corrente mais importante da civilização americana e europeia. O espírito desta civilização se manifesta na indústria, na arquitetura e na música do nosso tempo, no seu fascismo e no seu socialismo, e é estranho e desagradável ao autor. Não se trata de um juízo de valor. Tal não quer dizer que ele aceite o que hoje em dia passa por arquitectura cmoo se fosse arquitectura, ou que não se aproxime do que se chama música moderna com a maior suspeita (embora sem compreender a sua linguagem), mas, por outro lado, o desaparecimento das artes não justifica que se julgue depreciativamente tal tipo de humanidade. Em épocas como esta, as naturezas genuínas e fortes põem de parte as artes e viram-se para outras coisas e, de uma maneira ou de outra, o valor do indivíduo encontra forma de se exprimir. Não evidentemente da mesma maneira que numa época de elevada cultura. Uma cultura é como uma grande organização que atribui a cada um de seus membros um lugar em que ele pode trabalhar no espírito do conjunto; e é perfeitamente justo que o seu poder seja medido pela contribuição que consegue dar ao todo. Numa época sem cultura, por outro lado, as forças tornam-se fragmentárias e o poder do indivíduo consome-se na tentativa de vencer forças opostas e resistências ao atrito; tal poder não é visível na distância que percorre, mas talvez unicamente no calor por ele produzido ao vencer o atrito. Mas a energia continua a ser a energia, e embora o espetáculo que a nossa época nos proporciona não seja o da formação de uma grande obra cultural, com os melhores homens a contribuir para o mesmo fim grandioso, mas o espetáculo mais expressivo de uma multidão cujos melhores membros trabalham com vista à realização de objectivos puramente pessoais, mesmo assim não nos devemos esquecer de que o espetáculo não é o que interessa.

CULTURA & VALORWhere stories live. Discover now