27. Parece que viste um morto

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– Vocês ainda estão nisso?

– A culpa é da minha irmã!

– A culpa é do meu irmão!

Rachel e Aidan berraram em simultâneo, parando finalmente de se atacarem verbalmente. Jake e David franziram o cenho, abismados com a reação dos dois irmãos, tão diferentes e tão iguais. Tal como eles mesmos, pensaram. Com um olhar cúmplice, pousaram as malas no chão e explodiram numa gargalhada trocista.

– Tão queridos! – comentou David, divertido com a expressão chateada da namorada e do amigo. – Será que os podemos adotar? – perguntou a Jake, fazendo-o entrar na brincadeira.

– Até vêm sincronizados e com mau feitio...

– Gozem mais. Gozem tudo – reclamou Aidan, desistindo de arrumar fosse o que fosse. – Já está arrumado, não é?

– Aidan, meu amor, não te excites tanto. São só umas malas – troçou Jake, sem se conter.  

– Qual é o drama? Ainda faltam estas coisas – informou David ao ver a bagageira sem espaço.

Aidan e Rachel fuzilaram-no com o olhar e reviraram os olhos, murmurando lamúrias frustradas. O loiro fechou a porta da bagageira com força e entrou em casa.

– O que é que eu disse? – perguntou David, sem conseguir conter o riso até Rachel afastar-se.   Hey! – Puxou-a pelo braço, antes que pudesse escapar. – Espera lá, tu também ficaste amuada? E sobrou para mim? – Olhou para Jake, como se ele pudesse responder àquela questão por ela. Fitou-a finalmente, abraçando-a e beijando-a no pescoço, sabendo que a desarmaria em segundos. Quase infantilmente, e por entre beijos repenicados na namorada, afirmou:

– Para a próxima meto tudo lá dentro sozinho.

Rachel fitou-o severamente, obrigando-o a parar com as carícias e, sem aviso, abriu o sorriso e riu sonoramente. Fixou os lábios dele e provocou:

– Promessas, amor. – Beijou-os sem paixão ou calor. – Só promessas. – Ergueu o sobrolho, em desafio, e entrou em casa. Jake riu quando a viu sair. A expressão confusa do irmão era demasiado boa.

– Escapou-me alguma coisa? – O mais novo tentou manter a expressão baralhada, embora sorrisse contagiado pela alegria do irmão. Queria ter a certeza de que não havia conteúdo sexual algum no que Rachel dissera. Não faziam amor desde que ela adoecera, e não fora por iniciativa ou falta de desejo dela, e a sua afirmação fizera-o pensar em algo que não malas.

– Não quero ter nada a ver com isso, meu irmão. Mas se a conversa não era sobre malas, para a próxima não deixes que se note que ela anda insatisfeita – zombou Jake, divertido. – Assim dás-me o dobro do trabalho para manter a honra da família.

David fez a careta mais infantil que Jake já vira e esmurrou-o sem força, apenas para o provocar.

Apesar de tudo, havia alguma normalidade. Ainda conseguiam brincar e serem eles mesmos, o que tornava tudo ligeiramente mais fácil. Ainda assim, não era o suficiente.

***

Depois de delineado o caminho a tomar para chegar à fronteira, de concordarem que cada um iria conduzir por um determinado espaço de tempo, para que a viagem se tornasse mais curta, restava encher o depósitos do veículo. Era a vez de David conduzir. Procurara por uma bomba de gasolina disponível durante mais tempo do que o esperado e apenas nos arredores da cidade fora possível encontrar o que pretendiam.

David prontificou-se a fazer o pagamento do combustível enquanto o irmão atestava o depósito.

Entrou na pequena loja de conveniência e deparou-se com um cenário já esperado. As prateleiras pareciam carecer de mercadoria, apenas as luzes de presença fluorescentes iluminavam o espaço, e um cheiro a mofo, um odor desagradável que David não conseguiu identificar contribuíam para o mau ambiente da divisão. A música country proveniente de um pequeno rádio sobre o balcão e a luz vinda de uma pequena saleta denunciavam uma outra presença e David bufou por perceber que teria de esperar.

Aproveitou para procurar tabaco, algo que o irmão e Aidan pediram, e esperou que alguém aparecesse do outro lado do balcão para o atender. Entretanto, desfolhou alguns jornais que embora desatualizados captaram o seu interesse. Tornara-se evidente que ninguém fornecia aquela loja há imenso tempo. Surpreendia-se por ainda haver gasolina nos depósitos ou mesmo por alguém manter um estabelecimento aberto sem condições.

Farto de esperar, tossiu propositadamente, anunciando-se, e esperou ouvir o som de um autoclismo, um gemido feminino, qualquer coisa que o fizesse crer que fora notado. Não podia esperar a noite toda. Pegou no tabaco e num jornal e não conseguiu resistir à tentação de levar um dos pacotes de gomas que pareciam tão solitários na grande prateleira. Dirigiu-se ao balcão, tentando encontrar a validade dos doces no pacote e antes de o conseguir fazer, tropeçou. Conseguiu impedir uma queda aparatosa ao agarrar-se ao balcão, por impulso. Não largou o que tinha nas mãos até reparar no que o fizera tropeçar.

Então, com um guincho assustado, recuou a uma velocidade que o fez cair e embater contra uma prateleira. Pontapeou o que pisara e cobriu a boca com as mãos trémulas ao dar-se conta do sucedido. Tentou desviar o olhar do que tinha em frente, mas não conseguia. Uns grandes olhos, raiados de sangue, baços e sem vida pareciam fitá-lo com intensidade. A boca entreaberta e coberta de sangue, as enormes bolhas, os hematomas na pele e o grande inchaço nos membros despidos confirmaram o que ele se recusava a pensar. Tropeçara num cadáver. Pisara-o e pontapeara-o em pânico.

A fraca luz incidia sobre ele, intensificando o olhar do homem, dando-lhe uma tonalidade quase psicadélica; a melodia melancólica country e o cheiro nauseabundo adensavam o ambiente. David sentiu-se invadido pelo pânico que todos os seus sentidos, exceto a visão, começaram a falhar.

Numa questão de segundos, levantou-se e nem se certificou se conseguia suster-se nas pernas torpes. Saiu da loja com uma pressa quase doentia, abrandando apenas quando chegou ao exterior e respirou ar puro. Tentou não olhar para trás e não cedeu ao impulso de correr para o carro. Com uma calma que estava longe de sentir, entrou no carro e descalçou-se antes de se agarrar ao volante como se fosse a sua tábua de salvação. Deixou os ténis lá fora, como gostaria de deixar toda a sua roupa, inclusive a memória do olhar intenso e sem vida.

Era a sua vez de conduzir e tinha que se concentrar. Limpou as mãos às calças diversas vezes, querendo apagar a sensação de nojo que se apoderara dele. Fechou os olhos e acalmou-se durante alguns segundos.

– Deu? – A voz do irmão tirou-o do tenebroso torpor. – David?

David piscou os olhos e fitou-o languidamente. – O quê?

Jake franziu os sobrolhos, estranhando a súbita reação do irmão. Era impossível não notar o pânico nos seus gestos, na sua expressão.

– O cartão funcionou?

– Compraste tabaco? – perguntou Aidan, aligeirando a tensão nos bancos da frente.

– David! – Jake insistiu, abanando-o. Algo não estava bem.

– Não – murmurou em resposta. – Não, quer dizer, deu, mas não havia tabaco – Rodou a chave e esperou que não fizessem mais perguntas. Não queria ter de falar, até se acalmar. Respirou fundo e acelerou, tentando não olhar pela vitrina da loja. – Vamos embora.

– Parece que viste um morto, puto – comentou Jake, abrindo um sorriso e ligando a rádio.

 David limitou-se a rir tremulamente ao ouvir a mesma música country.

– Estás bem? – insistiu Jake.

– Sim, porque não haveria de estar?

Mas Jake não ficou convencido. Os nós brancos dos dedos que apertavam o volante e a súbita expressão alarmada indicavam o contrário. David sabia-o, mas tudo o que queria era ir-se embora. Chegar ao Canadá o quanto antes, tentar arranjar uma solução para regressar a casa e não iria permitir que nada nem ninguém os fizesse mudar de ideias. Nem mesmo o que acabara de presenciar.

Foi só um susto, pensou. Não voltaria a acontecer.

Ou voltaria?

***

NOTA DE AUTORA

Este capítulo é a coisa mais banal de sempre, em que só quero mostrar que apesar de tudo, eles conseguem arranjar felicidade nas pequenas coisas, e que provavelmente esta viagem não vai ser tão fofinha como o querido David pensava ;) Porque ele não terá dito a ninguém o que viu dentro da loja de conveniência?

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