"O Segredo das Mariposas" | R. V. Overclass

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Seres feitos de gelo migravam em meio a nevascas para uma terra gélida e lá faziam sua morada. Prosperidade, mas também fome. Fome. Bocas rasgando e dilacerando avidamente corpos. Mulheres de cabelos escorridos e metade polvo rindo, girando e habitando cascos de navios, juntas de esqueletos lavados pelo oceano, construíam suas famílias.

Vocês conseguem entender objetivamente tudo que está acontecendo nesse parágrafo?

E neste?

Círculos de energia acobreados sendo golpeados exaustivamente por mãos cadavéricas, arranhados por unhas amareladas de grandes ossadas retorcidas que urravam sem jamais parar. Luxo e pobreza. Silhuetas organizadas andando majestosamente por corredores e, ao sair, formando semicírculos – milhares deles – ramificando-se como raízes, penetrando a mente como se penetra o solo.

Provavelmente, não. Não com absoluta certeza, mas sem dúvida vocês conseguem evocar imagens, um tanto aleatórias, e, principalmente, sensações intensas, olfativas, auditivas e até táteis.

Para alguns especialistas "Aurora", um filme mudo de 1927, foi o ápice da história do cinema.

E, sim, mesmo considerando os filmes atuais, os clássicos da década de 60, como os de Hitchcock, ou mesmo dos anos 70, como a obra-prima "O Poderoso Chefão".

Você agora deve estar se perguntando como um filme tão velho, mudo, ainda por cima, pode ser considerado mais relevante do que obras mais atuais, onde a tecnologia torna a criação quase ilimitada.

A pergunta é justa e eu tentarei respondê-la (rs).

Muitos consideram o cinema a arte mais próxima da escrita. As duas artes buscam construir, evocar, imagens. Uma, apenas na mente do leitor, a outra, na tela do salão de cinema.

Bem, mas a pintura também faz isso. O cinema, entretanto, tem o movimento, o transcorrer do tempo, em semelhança a forma como o cérebro interpreta a narrativa de um livro.

Então, se cinema é estruturalmente a construção de imagens em movimento, muitos chegaram a conclusão que o ápice dessa concepção estava nos filmes mudos. Simplesmente, porque como advento do som, e depois dos efeitos digitalizados, o artista acabou por encontrar nessas ferramentas uma muleta para a criação.

Sempre que o roteirista e o diretor não encontravam uma solução visual para uma cena qualquer, se utilizavam de um diálogo, por exemplo. Algo impossível no cinema mudo, que acabava por obrigar o artista a encontrar uma resolução mais inventiva e coerente com o cinema.

Não à toa, foi na década de 20 que a técnica cinematográfica mais cresceu, mais os artistas experimentaram. Não só pela imaturidade, mas pelo desafio de se encontrar as particularidades que tornavam o cinema uma arte única como a escrita.

Aurora, como possivelmente o melhor filme mudo da história, torna-se nesse contexto o melhor exemplar da arte de se contar uma história com imagens.

Tá, acho que isso vocês já entenderam, mas o que tudo isso tem a ver com a resenha de "O Segredo das Mariposas", o belo livro de R. V. Alves?

Por que a narrativa de "O Segredo das Mariposas", em seu início, me lembra muito um filme mudo surrealista, da década de 20, por ser um texto que evoca imagens, muitas vezes desconexas e sem significado racional. Mas que, ainda assim, se conecta perfeitamente com as emoções do leitor necessárias para aquele momento da história.

Não há a preocupação com a interpretação intelectual da cena pelo leitor, mas sim sensorial. Imagens que estimulam os sentidos além da visão. Incrível.

Um belo exemplo disso no cinema é "Um Cão Andaluz", do gênio espalhafatoso Luis Buñuel.

Buñuel até oferece uma mínima estrutural narrativa, fragmentos de uma história quase inteligível, mas sua preocupação majoritária são as imagens e como elas afetam o espectador. 

O sentido das imagens se encerrando em si mesmas.

Vale a experiência.

E é isso que eu encontrei no início do livro de R. V. Alves. O habilidoso escritor não abdica da história, da construção narrativa clássica, mas aproveita para temperar suas cenas como pitadas de surrealismo. As palavras se empilhando em imagens caóticas e ao mesmo tempo sensorialmente lógicas em nossa mente.

Entretanto, duas mariposas gêmeas que planavam despercebidas por ali e testemunharam tudo, desceram valsando graciosamente pelo ar, rumo a silenciosa boca do senhor. Enxotaram, por um pouco, os três que em breve seriam quatro, posaram justamente em cima, cada qual com sua metade e abriram majestosamente as asas de tons lunares. Duas protetoras, selando assim todo e qualquer enigma que a carne do vinte e dois viria a contar.

...

Mais uma resenha entregue e essa foi por pouco! Rs
Quase não consigo lançá-la essa semana. Espero que gostem, em especial R. V. Alves.

Peço perdão mais uma vez a todos que eu ainda não respondi, mas logo responderei. Essas semanas anteriores às minhas férias estão uma loucura.

Agradeço de todo o coração os comentários, os votos, e o desejo de boas férias. Brigado mesmo pessoal!

Vcs já viram algum filme que as cenas tinham um tom nonsense? Um tanto surreal? David Lynch é um ótimo exemplo de diretor que usa essa técnica em seus filmes. Como foi a experiência?

Quando esse tipo de narrativa pode se tornar interessante para um livro? Além de um sonho, claro... rs

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