20. Eu não quero que chores

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– Mas está tudo bem.

– Não, não está, Rachel. E estou assustado como o caraças.

– Tu vais ficar bem...

– Mas tu não! – quase gritou, acalmando-se no mesmo instante e limpando as lágrimas com brusquidão, como se fosse uma criança. – Eu não vou ficar bem enquanto não te vir fora dessa cama. – Ambos sabiam que não era possível. Ela parecia aceitar e ele, mimado e egoísta como o irmão lhe chamara, fazia questão de dramatizar até à exaustão. Limitava-se a expressar o que sentia, algo que os outros não faziam por vergonha, medo ou orgulho, mas ele não conseguia evitar.

Era egoísta. Jake tinha razão e ele sabia-o. Rachel lutava contra a morte todos os dias um pouco mais e ele preocupava-se com o que iria sentir quando ela partisse. – Vai ficar tudo bem – murmurou, fitando-a com intensidade. Enquanto ela ali estivesse, tudo estaria bem. Limpou o rosto molhado novamente e fungou. – Queres que traga alguma coisa? Que chame alguém?

Rachel percebeu a rápida mudança de atitude no namorado e não pode deixar de sorrir.

– Não. Quero só tomar banho. – levantou-se com dificuldade, entre guinadas de dor que não transpareceu na sua expressão e travou o rapaz, quando o viu aproximar-se demasiado. – Desta vez não, amor.

Custava-lhe imenso vê-la rejeitar a sua ajuda, mas não a queria contrariar. Nada lhe aconteceria enquanto ele ali estivesse, mentalizou-se.

– Vês? Eu disse que estava bem – observou Rachel, tentando mostrar alguma confiança, quando se colocou de pé. Ele não respondeu. Ela estava demasiado calma e queria-a assim. Não sabia quantas mais oportunidades lhes restariam.

– David... – Novamente naquela noite, David não foi capaz de fitá-la. – Eu amo-te muito. Sabes isso, não sabes?

O rapaz limitou-se a fechar os olhos quando o que queria era responder à sua declaração como fizera inúmeras vezes, em situações adequadas, espontaneamente. Fracassaria se o fizesse naquele momento e, por isso, apenas acenou afirmativamente, brincando nervosamente com os próprios dedos para se acalmar.

– Só não te esqueças disso.

Rachel viu o olhar dele transformar-se novamente e concluiu que não aguentava por muito mais tempo. Sem dizer mais nada, trancou-se na casa de banho e encostou-se à porta durante breves segundos, até tomar consciência da verdadeira realidade.

Sem demora, ligou o chuveiro para que o simples som da água a correr a distraísse. Que o distraísse a ele, do outro lado da porta. Observou-se ao espelho, tocou nas suas órbitas raiadas de sangue, nas pequenas manchas que lhe cobriam grande parte do rosto. Partilhando algum do sentimento que David sentia – a revolta –, retirou a máscara com brusquidão e lançou-a para o lavatório.

Não suportando a visão de um fantasma do que fora um dia, ao espelho, colocou-se debaixo da água gelada, o suficiente para que as dores no seu corpo se tornassem quase nulas face aos arrepios que a percorriam. Dentro de dias, talvez poucas horas, tudo terminaria. Todos os que a rodeavam sabiam-no e talvez fosse por isso que se tornava tão difícil, agora sozinha, conter as lágrimas que o seu corpo já não conseguia produzir normalmente. Não se chocou quando viu o sangue que brotava da sua boca ressequida misturar-se com a água e lágrimas que lhe escorriam pelo corpo franzino e se entranhavam na pequena camisola que ainda vestia. Só era chocante perceber tão tarde tudo o que estava prestes a perder, sem nada poder fazer.

***

Kim não queria ter assistido àquela conversa, à troca de olhares, à nova revolta de David. Sentia-se uma intrusa e tinha todos os motivos para que os outros pensassem o mesmo. No entanto, a porta encontrava-se entreaberta e a sua curiosidade fora mais forte. David rebelava-se novamente, desta vez contra a namorada, mas dava para perceber que a sua raiva não era direcionada à rapariga.

Ela compreendia-o. De uma forma inexplicável, ela vinha a sentir-se estranha com toda a agitação dos últimos dias. Um sentimento desconhecido corroía-a e fazia com que se sentisse obrigada a ajudá-los. Rachel tinha de viver. Fora a única pessoa que não a julgara e ajudara cegamente. Teria de ajudá-la também. Todos pareciam sofrer com a doença da rapariga e ela não suportava aquele ambiente tão pesado e quase fúnebre.

Encostou a porta do quarto de Rachel, quando a viu dirigir-se à casa de banho e o rapaz ceder novamente. Sem pensar, encaminhou-se para o quarto, mas não para o dela. Apenas uma pessoa lhe poderia dar as respostas e garantias que ela necessitava para que se acalmasse e percebesse o que sentia.

Entrou no quarto de Jake, cuja porta estava entreaberta, e observou-o, desapontada. Ele dormia serenamente e ela nunca teria coragem de o acordar. Queria muito falar com ele, queria que ele a protegesse e fizesse com que deixasse de sentir o que sentia nas últimas horas, mas não o acordaria.

Então, com um longo suspiro, deitou-se no pequeno pufe perto da cama dele e esperou pela manhã. 


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