Prévios acontecimentos

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A guerra já passou por aqui. Talvez ele já não esteja mais dentro do castelo como a deusa disse que estaria — disse Mário para si mesmo, enquanto caminhava por entre as pilhas de pedaços de espadas, destroços de armaduras e corpos espalhados por uma terra árida.

Um pútrido cheiro de morte subia aos ares. Avançava com dificuldade sempre rumando o castelo à sua frente, que estava fincado como uma grande pedra de quartzo cravejada de diamantes, cheia de portas e janelas, escondida por um grande muro no meio de uma praça pavimentada de granito.

Muitos dos corpos no chão eram da linha de guarnição que austeramente protegeu o castelo enquanto se manteve viva. Alguns ainda enfiados em suas grossas cotas de malhas, estavam deitados sobre poças de seu próprio sangue. Outros eram da própria Hoste da Purgação, identificados pelas armaduras negro-foscas, os quais ainda mantinham seus rostos escondidos por seus elmos cheios de chifres. Mas o barulho de metal contra metal, dos gritos de dor e de carne sendo rasgada ainda eram trazidos pelo vento de algum lugar por perto.

Quando chegou mais perto de seu destino, pôde ver as torres montadas tijolos sobre tijolos esgueirando-se pelos céus avermelhados e a majestosa praça com todos seus pequenos jardins de roseiras e cerejeiras em volta da Coluna da Graça de Lunus.

Deteve seu olhar nela.

"Meus diamantes desperdiçados nessa porcaria de monumento. Tudo para agradar um monte de plebeus preconceituosos e idiotas", pensou.

Olhou as rosas pisadas e as cerejeiras despidas na praça.

"Você mais do que ninguém deveria evitar bajular esses apoiadores da Segregação".

Então suspirou. Quem era ele para dizer qualquer coisa? Ele próprio tinha se vendido à Hícse em troca da morte do irmão.

"Dane-se! Vicent já tem tudo na vida. Ele não precisa do trono e a deusa prometeu que faria de mim um leviantar normal. Não essa merda de gnock".

Continuou a avançar. O castelo para onde ia parecia tentar manter-se digno diante da hecatombe, mas já estava também debilitado. Parte do muro à esquerda do portão de acesso agora era escombros e o próprio portão estava deitado como um gigante cadáver de madeira. Aríetes apareciam aqui e acolá, por entre os escombros, denunciando a si próprios.

Atravessou o portão caído e o vão de entrada, caminhou furtivamente por muitos corredores e com muito cuidado passou por uma bela porta de madeira.

— Ora, ora. Aqui está você, irmão. A deusa não mentiu.

Vicent dormia pesadamente, enfeitiçado pelo chá de ninfas.

Mário escancarou a boca. Sentiu-se sufocado enquanto a espada rastejava por sua garganta. Teve ânsia de vômito. Tossiu. Sentiu o gosto do cabo de osso, depois do renanthao da lâmina. O cabo veio para fora da boca, pingando sua saliva. Agarrou-o e terminou de puxar a espada. Sua baba escorreu pelo queixo depois de tudo isso.

Aproximou-se de Vicent em silêncio. Prendeu a respiração. Recolheu sua cauda em forma de seta e as asas de morcego para não fazer barulho. Limpou a baba da espada na roupa antes de levantá-la sobre o irmão. Então desceu-a com a força de uma guilhotina.

*********

Mário abriu os olhos. Virou-se para seu lado direito e viu sua irmã olhando para frente. Olhou também para aquela direção e viu seus pais sentados nas poltronas dianteiras.

Ainda estavam no carro. Aquele não passava do mesmo pesadelo que o atormentava todas as noites desde que sofrera o acidente que o tinha deixado cerca de dois meses em coma.

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