Os demônios de Voltaire

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Mário não estava louco. Tinha plena certeza de ter visto dentes caninos protuberantes na boca do gótico de cabelo longo amarrado para trás quando ele abriu a boca para falar. "Deve ser uma fantasia, não é possível". Com aquilo, somado à aparência cadavérica deles, era difícil não associá-los aos vampiros que já vira em filmes. A fantasia e as próteses que usavam eram perfeitas. Não acreditaria se alguém lhe tivesse contado. 

Mário havia lido, certa vez, textos de Voltaire sobre a existência de vampiros.  O filósofo acreditava piamente que eles eram reais. Definia-os como mortos que saiam dos cemitérios à noite para sugar sangue, fosse através da garganta ou do ventre. Estava de noite e, com um cadáver naquela casa, talvez ela fosse uma espécie de cemitério. "Para de bobagem, Mário. Vampiros não existem. A obra de Voltaire é demoníaca, antibíblica e fantasiosa. É uma heresia sem tamanho".

— Achei ter visto dentes de vampiros.

— Amor, vampiros? Você tem certeza?

— Acho que não, Suzy. Devem ser  só uns malucos fantasiados.

— Então... Saímos para pedir ajuda?

Mário refletiu por uns instantes. Já não estava mais sentindo segurança naquela proposta que ele mesmo fizera.

— Não sei. Vamos continuar observando. 

Abriu novamente a porta para ver que ainda estavam conversando. Depois os via dar uma fungada no ar e procurar o cheiro com os narizes. Também mostravam os dentes imitando feras. "Não são vampiros, mas imitam muito bem", concluiu. Em um certo momento, a moça ruiva olhou na direção do quarto onde estavam e Mário fechou a porta novamente.

— O que foi agora? — perguntou Suzane. A namorada estava morrendo de medo.

— Acho que não foi uma boa ideia ficarmos aqui.

— Por quê? — Suzane agarrou com força a barra do moletom de Mário, apreensiva.

Mário olhou para a janela. Sendo ou não vampiros, aquelas pessoas não pareciam nada amistosas. No mínimo eram uns adolescentes arruaceiros que gostavam de vandalizar e podiam machucá-los. 

— Vamos sair daqui.

— Alguém aí? — disse uma voz rouca feminina na língua estranha, do outro lado da porta. Mário deu um espasmo com o susto.

— Vamos, vamos, vamos.

Agarrou Suzane pelo braço e saiu puxando-a. Erick apontou a cabeça atrás do criado-mudo onde estava.

— Vem, Erick. Vamos sair daqui!

— Ah, agora você me dá razão.

— Agora não é hora para isso. Anda logo, vem.

Erick saiu de seu lugar. A porta se abriu e a ruiva apareceu. Mário acelerou o passo e esperou Suzane subir na janela. A mulher arreganhou a boca e mostrou os dentes, bem como fazem as cobras que estão para atacar. Suzane deu um grito e depois pulou. Erick se aproximou, esbaforido.

Que merda!  Não me diga que eles são...

— Vamos, Erick. Vai, vai!

Mário abriu espaço para que Erick subisse. Ele colocou um pé na janela, mas parou, levando a mão à cabeça.

— O que foi Erick? Vam'bora!

— Ai, minha enxaqueca apertou aqui.

A mão da mulher agarrou Mário pelo capuz do moletom e o jogou para trás, com muita força. Ao cair, sentiu quão duro era o assoalho de madeira. Fez o mesmo com Erick, que bateu contra a parede fazendo um grande barulho. Depois do impacto, automaticamente o amigo levou a mão à cabeça. Ele parecia estar meio tonto.

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